O sonho da
música
Biógrafo de Nietzsche e músico, Curt Paul Janz fez o
filósofo reviver ao piano e através de suas composições.
Entrevistado por François Ewald
Publicado em Magazine littéraire, avril 1992, n.º 298.
Tradução Allan
Sena.
Curt Paul Janz é autor
de uma biografia monumental de Nietzsche (1978, na Alemanha), três volumes na edição
francesa, ainda que um pouco abreviada, biografia que pode parecer praticamente
definitiva. A mesma ganhou várias edições alemãs (pela Hanser Verlag),
traduções italianas, espanholas e francesas (pela Gallimard, 1984). Somente os
ingleses relutam diante da importância da obra. Curt Paul Janz se apoiou, em
particular, sobre a extensa correspondência de Nietzsche: ela lhe permitiu
seguir com uma grande precisão os diferentes momentos da vida de Nietzsche,
buscando restituí-lo ao seu ambiente. Curt Paul Janz, com mais de oitenta anos
de idade, vive nos arredores de Basiléia, em Muttenz. Músico de profissão,
formidável especialista em Wagner, é autor do catálogo das obras musicais de
Nietzsche. Um raríssimo especialista em Nietzsche a oferecer um ponto de vista
esclarecido sobre o papel da música no filósofo alemão.
–
Por que acaso você foi conduzido a empreender esse imenso trabalho?
– Isso, com efeito, parece surpreendente
porque eu não sou filósofo de formação. Originalmente, sou músico: fui, por
quarenta e seis anos, violista na orquestra sinfônica da Basiléia. Mas meu
hobby é a filosofia e a filologia grega.
Descobri Nietzsche por
Wagner. Quando fazia meus estudos no conservatório, descobri um texto que fazia
menção a um autor horrível que havia cometido um livro horrível sobre Wagner:
tratava-se de O caso Wagner, de
Nietzsche. Fui procurá-lo na biblioteca: vinha em conjunto com Crepúsculo dos ídolos. Meu bom conhecimento
de Wagner, de suas obras musicais, de seus escritos e de sua correspondência,
ajudou-me bastante em meu trabalho sobre Nietzsche. Nietzsche, com efeito, não
cessou de debater com Wagner. Algo que não se interrompeu quando da separação
deles. Lendo os fragmentos póstumos, constata-se que, sem se deter, e de
maneira bastante improvisada, porém insistente, Nietzsche retorna a Wagner.
Essa é uma discussão que jamais teve fim.
Mas eu tenho outras
afinidades com Nietzsche: primeiramente, Basiléia, onde sempre vivi e onde
participei deste mesmo seminário de grego que Nietzsche ficou encarregado durante
dez anos, e que ainda existe até hoje.
Mas foi sobretudo a
música que me aproximou de Nietzsche. Tive a ocasião de trabalhar sobre a
importância das formas musicais no Zaratustra
de Nietzsche. Ocupei-me sobretudo de uma edição da obra musical póstuma de
Nietzsche. Isso foi nos anos 50. Nessa época, um certo Richard Blunck
trabalhava em uma biografia de Nietzsche, cujo primeiro tomo, que se estendia
até o início de sua vida profissional, foi publicado em 1953. O segundo volume,
sempre anunciado, jamais chegou a aparecer: Richard Blunck morreu bruscamente
em 1962 de uma crise cardíaca. Foi então que o professor Karl Schlechta, que
havia realizado uma edição de Nietzsche, e que eu conhecia, procurou alguém que
pudesse dar continuidade ao trabalho que Blunck havia começado. Ele havia
salvado os manuscritos de Blunck, mas não encontrara ninguém que os retomasse. Ele
me prometeu que o manuscrito de Blunck não exigiria nada mais do que um
trabalho de redação. Mas quando os documentos de Blunck me foram entregues,
constatei que não havia uma só frase escrita nele, mas pilhas enormes de
citações e notas. Eu deveria tomar o controle de tudo, desde o começo,
verificar as notas. Ele enganou-se com frequência. Não tinha nenhum
conhecimento da música de Nietzsche. Tive, pois, que revisar o primeiro volume.
Tive ocasião de trabalhar com Montinari: ajudávamos-nos mutuamente; eu lhe dava
as indicações musicais de que ele tinha necessidade; ele me ajudava a ler os
manuscritos que eu não conseguia decifrar.
– Dizem que a música de Nietzsche
não é muito boa.
– Essa é a reputação que lhe fez Hans
von Bülow em 1872 [1],
na carta em que responde a Nietzsche, que lhe havia enviado sua “Meditação de
Manfred”. “Entre todos os esboços de partituras que apareceram diante de meus
olhos, não via há muito tempo algo tão extremo no estilo da extravagância
fantástica, algo tão desagradável e tão antimusical.” E ele prosseguiu lhe
perguntando se não se tratava de uma “piada”. Julgamento que não foi sem
efeito: ele quebra todas as vaidades musicais de Nietzsche, e isso num momento em
que Nietzsche encontrava seu trabalho filológico – O nascimento da tragédia – violentamente condenado por Wilamowitz.
Mas esse julgamento é
muito injusto. Nietzsche era bom músico, tocava piano bem e é autor de boas peças.
Continuou a tocar após o “colapso” de 1889. Em Iena, por exemplo, ficava num
restaurante onde lhe deixavam tocar, improvisar duas horas todos os dias. Ele
sempre tocava piano, e, em particular, Wagner.
Nietzsche começou a
compor muito cedo, desde os seus anos no Liceu: esboçou um réquiem (sem dúvida
inspirado em Mozart), uma missa, um oratório de Natal, uma miserere muito boa
que ele deve ter composto sob influência de Palestrina. Peças muito belas para
pianos, uma quinzena de lieders, esboços sinfônicos que, indo muito além do que
se fazia no seu tempo, anuncia Richard Strauss. Nietzsche trabalhava com
impressões que ele recolhia ao escutar outros, como se discutisse com aqueles
que poderiam sentir como ele. Assim o fez com Beethoven ou Chopin. Fez o mesmo
em filosofia, com Kant ou Platão, por exemplo.
Em 1874, Brahms esteve
na Basiléia para dirigir a primeira das Triumphlied
para coro e orquestra que ele havia composto para a vitória de 1871. Nietzsche,
que assistiu ao concerto, ficou entusiasmado. Com efeito, seguiu Brahms até
Zurique, onde o mesmo concerto seria dado. Fez uma transcrição para piano e deu
para Wagner, fazendo os maiores elogios. Este não a recebeu bem. Esse foi sem
dúvida uma dos motivos para a separação.
Na mesma época,
Nietzsche experimentou composições maiores, que não são inteiramente
influenciadas por Wagner. Há um animado trecho para piano, que se desenvolve
para se transformar bruscamente em uma sonata de Beethoven, que ele apreciava
particularmente, associando muito com Chopin. Tudo isso não foi suficientemente
estudado, os filósofos geralmente não são músicos e os músicos não se
interessam muito por Nietzsche. Há aí uma grande lacuna.
– É possível compreender
a filosofia de Nietzsche sem a música?
– A maior parte de suas composições
musicais data de seus anos de estudos, antes, pois, de seus anos de filósofo.
Suas primeiras composições adotam o estilo romântico de seu tempo; elas testemunham
a influência de Schumann. Mais tarde, nessa grande composição que é a Fantasia para piano, Nietzsche cita de forma
bastante consciente o Siegfried-Idyll
de Wagner. Se Nietzsche é um músico romântico, como filósofo, ele busca superar
o romantismo. Ter permanecido romântico, é uma das críticas que ele endereça a
Wagner. Nietzsche se recusava o tipo de desenvolvimento encontrado em Wagner.
Ele preferia as peças mais cinzeladas, perfeitas, fechadas em si mesmas e bem
identificadas, como encontradas nas óperas de Mozart, na Carmen de Bizet ou em Liszt.
– Como a filosofia de Nietzsche foi
recebida durante sua vida?
– Durante sua vida, Nietzsche permaneceu
praticamente desconhecido. Após a publicação do Nascimento da tragédia, por exemplo, ele teve que enfrentar,
através da pena de Wilamowitz, o julgamento filológico. No ano seguinte, ele já
não tinha estudantes. É necessário precisar que nessa época a Universidade de
Basiléia como um todo não tinha mais de duzentos estudantes e que o seminário de
Nietzsche tinha “normalmente” três estudantes. Até o fim de sua carreira, ele
não teve mais do que dez estudantes.
Seu reconhecimento
começou após o “colapso”, em 1890. O “colapso” teve certamente uma importância
positiva para a sua popularidade, sua valorização, tal qual a morte de Sócrates
ou a morte de Cristo. Isso soou como um milagre. Foi seu fim trágico que tornou
Nietzsche interessante para o público, no círculo de amigos, no círculo dos
wagnerianos e mesmo na universidade. E há, claro, o trabalho efetuado pela sua
irmã Elisabeth, a criação do Arquivo-Nietzsche em Weimar, em oposição explícita
ao Arquivo-Goethe, toda a mitologia que ela se esforçou edificar em torno de
seu irmão, fazendo dele um autor absolutamente original, que havia tirado tudo
de si mesmo, independente de toda influência.
– Qual sua impressão sobre a pessoa
de Nietzsche, após ter vivido tanto tempo com ele?
– Vivi quinze anos com Nietzsche,
percorrendo em um ano aquilo que ele próprio viveu em dois. Guardo a imagem de
uma figura trágica. Primeiramente, por conta das terríveis doenças, dos
sofrimentos impossíveis que acompanharam sua vida e com que ele teve que lutar
constantemente. Ele achava que isso se devia ao clima: então procurava
indefinidamente o lugar onde se sentiria melhor. Sua vida foi particularmente penosa. Sua
filosofia é feita de paixões. Não se trata de um filósofo cerebral, do
entendimento, um filósofo do conhecimento retirado e desencarnado. Nele, tudo
vem da experiência, de suas emoções. Sua filosofia é debate consigo mesmo, com
o cristianismo, e os intérpretes do cristianismo. Tenho uma grande consideração
por essa vida. Nietzsche achava que tinha uma missão, – não nos cabe julgar –,
ele viveu, totalmente, para ela. Ele era uma companhia muito agradável; falava
docemente. Era muito calmo, muito amigável, em particular com as mulheres.
Estava sempre bem vestido, perfumado. Mas não era um homem alegre. Foi muito
querido na sociedade da Basiléia e pelos estudantes. Viveu praticamente em uma
solidão muito grande, tornando-se quase um estrangeiro entre os homens – esta é
uma outra dimensão dessa figura trágica –, ainda que ele tenha constantemente
procurado, em vão, amigos, ocasiões para conversas. Queixava-se muitas vezes. Procurou
também contatos epistolares.
Mas, mesmo que dê
conferências sobre esse ou aquele aspecto da vida ou da obra de Nietzsche, mesmo
que continue a trabalhar sobre sua correspondência, tenho mantido a distância.
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