terça-feira, 1 de outubro de 2013

O SONHO DA MÚSICA - CURT PAUL JANZ





O sonho da música

Biógrafo de Nietzsche e músico, Curt Paul Janz fez o filósofo reviver ao piano e através de suas composições.

Entrevistado por François Ewald

Publicado em Magazine littéraire, avril 1992, n.º 298.
Tradução Allan Sena.

            Curt Paul Janz é autor de uma biografia monumental de Nietzsche (1978, na Alemanha), três volumes na edição francesa, ainda que um pouco abreviada, biografia que pode parecer praticamente definitiva. A mesma ganhou várias edições alemãs (pela Hanser Verlag), traduções italianas, espanholas e francesas (pela Gallimard, 1984). Somente os ingleses relutam diante da importância da obra. Curt Paul Janz se apoiou, em particular, sobre a extensa correspondência de Nietzsche: ela lhe permitiu seguir com uma grande precisão os diferentes momentos da vida de Nietzsche, buscando restituí-lo ao seu ambiente. Curt Paul Janz, com mais de oitenta anos de idade, vive nos arredores de Basiléia, em Muttenz. Músico de profissão, formidável especialista em Wagner, é autor do catálogo das obras musicais de Nietzsche. Um raríssimo especialista em Nietzsche a oferecer um ponto de vista esclarecido sobre o papel da música no filósofo alemão.

Por que acaso você foi conduzido a empreender esse imenso trabalho?

– Isso, com efeito, parece surpreendente porque eu não sou filósofo de formação. Originalmente, sou músico: fui, por quarenta e seis anos, violista na orquestra sinfônica da Basiléia. Mas meu hobby é a filosofia e a filologia grega.
Descobri Nietzsche por Wagner. Quando fazia meus estudos no conservatório, descobri um texto que fazia menção a um autor horrível que havia cometido um livro horrível sobre Wagner: tratava-se de O caso Wagner, de Nietzsche. Fui procurá-lo na biblioteca: vinha em conjunto com Crepúsculo dos ídolos. Meu bom conhecimento de Wagner, de suas obras musicais, de seus escritos e de sua correspondência, ajudou-me bastante em meu trabalho sobre Nietzsche. Nietzsche, com efeito, não cessou de debater com Wagner. Algo que não se interrompeu quando da separação deles. Lendo os fragmentos póstumos, constata-se que, sem se deter, e de maneira bastante improvisada, porém insistente, Nietzsche retorna a Wagner. Essa é uma discussão que jamais teve fim.
Mas eu tenho outras afinidades com Nietzsche: primeiramente, Basiléia, onde sempre vivi e onde participei deste mesmo seminário de grego que Nietzsche ficou encarregado durante dez anos, e que ainda existe até hoje.
Mas foi sobretudo a música que me aproximou de Nietzsche. Tive a ocasião de trabalhar sobre a importância das formas musicais no Zaratustra de Nietzsche. Ocupei-me sobretudo de uma edição da obra musical póstuma de Nietzsche. Isso foi nos anos 50. Nessa época, um certo Richard Blunck trabalhava em uma biografia de Nietzsche, cujo primeiro tomo, que se estendia até o início de sua vida profissional, foi publicado em 1953. O segundo volume, sempre anunciado, jamais chegou a aparecer: Richard Blunck morreu bruscamente em 1962 de uma crise cardíaca. Foi então que o professor Karl Schlechta, que havia realizado uma edição de Nietzsche, e que eu conhecia, procurou alguém que pudesse dar continuidade ao trabalho que Blunck havia começado. Ele havia salvado os manuscritos de Blunck, mas não encontrara ninguém que os retomasse. Ele me prometeu que o manuscrito de Blunck não exigiria nada mais do que um trabalho de redação. Mas quando os documentos de Blunck me foram entregues, constatei que não havia uma só frase escrita nele, mas pilhas enormes de citações e notas. Eu deveria tomar o controle de tudo, desde o começo, verificar as notas. Ele enganou-se com frequência. Não tinha nenhum conhecimento da música de Nietzsche. Tive, pois, que revisar o primeiro volume. Tive ocasião de trabalhar com Montinari: ajudávamos-nos mutuamente; eu lhe dava as indicações musicais de que ele tinha necessidade; ele me ajudava a ler os manuscritos que eu não conseguia decifrar.

– Dizem que a música de Nietzsche não é muito boa.

– Essa é a reputação que lhe fez Hans von Bülow em 1872 [1], na carta em que responde a Nietzsche, que lhe havia enviado sua “Meditação de Manfred”. “Entre todos os esboços de partituras que apareceram diante de meus olhos, não via há muito tempo algo tão extremo no estilo da extravagância fantástica, algo tão desagradável e tão antimusical.” E ele prosseguiu lhe perguntando se não se tratava de uma “piada”. Julgamento que não foi sem efeito: ele quebra todas as vaidades musicais de Nietzsche, e isso num momento em que Nietzsche encontrava seu trabalho filológico – O nascimento da tragédia – violentamente condenado por Wilamowitz.
Mas esse julgamento é muito injusto. Nietzsche era bom músico, tocava piano bem e é autor de boas peças. Continuou a tocar após o “colapso” de 1889. Em Iena, por exemplo, ficava num restaurante onde lhe deixavam tocar, improvisar duas horas todos os dias. Ele sempre tocava piano, e, em particular, Wagner.
Nietzsche começou a compor muito cedo, desde os seus anos no Liceu: esboçou um réquiem (sem dúvida inspirado em Mozart), uma missa, um oratório de Natal, uma miserere muito boa que ele deve ter composto sob influência de Palestrina. Peças muito belas para pianos, uma quinzena de lieders, esboços sinfônicos que, indo muito além do que se fazia no seu tempo, anuncia Richard Strauss. Nietzsche trabalhava com impressões que ele recolhia ao escutar outros, como se discutisse com aqueles que poderiam sentir como ele. Assim o fez com Beethoven ou Chopin. Fez o mesmo em filosofia, com Kant ou Platão, por exemplo.
Em 1874, Brahms esteve na Basiléia para dirigir a primeira das Triumphlied para coro e orquestra que ele havia composto para a vitória de 1871. Nietzsche, que assistiu ao concerto, ficou entusiasmado. Com efeito, seguiu Brahms até Zurique, onde o mesmo concerto seria dado. Fez uma transcrição para piano e deu para Wagner, fazendo os maiores elogios. Este não a recebeu bem. Esse foi sem dúvida uma dos motivos para a separação.
Na mesma época, Nietzsche experimentou composições maiores, que não são inteiramente influenciadas por Wagner. Há um animado trecho para piano, que se desenvolve para se transformar bruscamente em uma sonata de Beethoven, que ele apreciava particularmente, associando muito com Chopin. Tudo isso não foi suficientemente estudado, os filósofos geralmente não são músicos e os músicos não se interessam muito por Nietzsche. Há aí uma grande lacuna.

É possível compreender a filosofia de Nietzsche sem a música?

– A maior parte de suas composições musicais data de seus anos de estudos, antes, pois, de seus anos de filósofo. Suas primeiras composições adotam o estilo romântico de seu tempo; elas testemunham a influência de Schumann. Mais tarde, nessa grande composição que é a Fantasia para piano, Nietzsche cita de forma bastante consciente o Siegfried-Idyll de Wagner. Se Nietzsche é um músico romântico, como filósofo, ele busca superar o romantismo. Ter permanecido romântico, é uma das críticas que ele endereça a Wagner. Nietzsche se recusava o tipo de desenvolvimento encontrado em Wagner. Ele preferia as peças mais cinzeladas, perfeitas, fechadas em si mesmas e bem identificadas, como encontradas nas óperas de Mozart, na Carmen de Bizet ou em Liszt.

– Como a filosofia de Nietzsche foi recebida durante sua vida?

– Durante sua vida, Nietzsche permaneceu praticamente desconhecido. Após a publicação do Nascimento da tragédia, por exemplo, ele teve que enfrentar, através da pena de Wilamowitz, o julgamento filológico. No ano seguinte, ele já não tinha estudantes. É necessário precisar que nessa época a Universidade de Basiléia como um todo não tinha mais de duzentos estudantes e que o seminário de Nietzsche tinha “normalmente” três estudantes. Até o fim de sua carreira, ele não teve mais do que dez estudantes.
Seu reconhecimento começou após o “colapso”, em 1890. O “colapso” teve certamente uma importância positiva para a sua popularidade, sua valorização, tal qual a morte de Sócrates ou a morte de Cristo. Isso soou como um milagre. Foi seu fim trágico que tornou Nietzsche interessante para o público, no círculo de amigos, no círculo dos wagnerianos e mesmo na universidade. E há, claro, o trabalho efetuado pela sua irmã Elisabeth, a criação do Arquivo-Nietzsche em Weimar, em oposição explícita ao Arquivo-Goethe, toda a mitologia que ela se esforçou edificar em torno de seu irmão, fazendo dele um autor absolutamente original, que havia tirado tudo de si mesmo, independente de toda influência.

– Qual sua impressão sobre a pessoa de Nietzsche, após ter vivido tanto tempo com ele?

– Vivi quinze anos com Nietzsche, percorrendo em um ano aquilo que ele próprio viveu em dois. Guardo a imagem de uma figura trágica. Primeiramente, por conta das terríveis doenças, dos sofrimentos impossíveis que acompanharam sua vida e com que ele teve que lutar constantemente. Ele achava que isso se devia ao clima: então procurava indefinidamente o lugar onde se sentiria melhor.  Sua vida foi particularmente penosa. Sua filosofia é feita de paixões. Não se trata de um filósofo cerebral, do entendimento, um filósofo do conhecimento retirado e desencarnado. Nele, tudo vem da experiência, de suas emoções. Sua filosofia é debate consigo mesmo, com o cristianismo, e os intérpretes do cristianismo. Tenho uma grande consideração por essa vida. Nietzsche achava que tinha uma missão, – não nos cabe julgar –, ele viveu, totalmente, para ela. Ele era uma companhia muito agradável; falava docemente. Era muito calmo, muito amigável, em particular com as mulheres. Estava sempre bem vestido, perfumado. Mas não era um homem alegre. Foi muito querido na sociedade da Basiléia e pelos estudantes. Viveu praticamente em uma solidão muito grande, tornando-se quase um estrangeiro entre os homens – esta é uma outra dimensão dessa figura trágica –, ainda que ele tenha constantemente procurado, em vão, amigos, ocasiões para conversas. Queixava-se muitas vezes. Procurou também contatos epistolares.
Mas, mesmo que dê conferências sobre esse ou aquele aspecto da vida ou da obra de Nietzsche, mesmo que continue a trabalhar sobre sua correspondência, tenho mantido a distância.  


[1] Cf. carta de Hans von Bülow a Nietzsche de 24 de julho de 1872.

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