domingo, 23 de dezembro de 2012
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
NIETZSCHE E A VONTADE DE VERDADE
NIETZSCHE E A VONTADE DE VERDADE
Allan Davy Santos Sena
Trabalho elaborado em 2007, para a avaliação da
disciplina Seminário de Ética, do curso de Filosofia da Universidade Federal do
Pará. Sob orientação do Prof. Dr. Roberto Barros.
INTRODUÇÃO
Em 1886, já em pleno desenvolvimento do que se convencionou chamar a
terceira fase de seu pensamento, isto é, a da transvaloração de todos os valores ou a etapa trágico-dionisíaca de seu projeto filosófico, Nietzsche escreve e
publica a obra Além de bem e mal, e
também redige, no mesmo ano, prefácios para novas edições das obras anteriores,
nos quais visa reavaliar seu percurso intelectual justamente à luz, sobretudo,
de seu projeto de transvaloração de todos os valores inaugurado em Além de bem e mal. [1]
Uma temática se mostra presente em praticamente todos os prefácios de
1886 e se sobressai nos aforismos iniciais do capítulo primeiro de Além de bem e mal, intitulado “Dos
preconceitos dos filósofos”, a saber, a vontade
de verdade (Wille zur Wahrheit).
A expressão já havia aparecido em Assim
falou Zaratustra (1883/1885) [2] e
recebera em dois textos da primeira fase do pensamento de Nietzsche outras
formulações, qual sejam, no primeiro dos Cinco
prefácios para cinco livros não escritos
(1872) [3], a
de pathos da verdade, e em Sobre verdade e mentira no sentido
extra-moral (1873), a de impulso
(Trieb) à verdade. [4] No
entanto, uma nova problemática é posta por Nietzsche nos textos de 1886, algo
já anunciado no primeiro dos Cinco
prefácios, mas que agora recebe sua construção mais forte e acabada: qual é,
afinal, questiona o filósofo, o valor
dessa vontade? Ou ainda, qual seria o valor da verdade mesma? Dessa forma, se
em Sobre verdade e mentira, Nietzsche
se mostrava empenhado em investigar qual a origem do que ele então chamava
impulso à verdade, nos textos de 1886, sua principal preocupação se volta
novamente, como no primeiro dos Cinco
prefácios, para a avaliação, a partir do prisma da vida enquanto superação
de forças posto pela filosofia da vontade de poder (Wille zur Macht), do que ele passa a chamar de vontade de verdade,
ou seja, por que se deveria dar preferência à verdade ao invés da inverdade, da
mentira e do erro?
Ora, Nietzsche faz ver que para a
vida enquanto superação de forças, a aparência e a ilusão são tão ou mais
necessárias do que a verdade, que todo ser vivente necessita continuamente,
para continuar em vida, do engano e da dissimulação e até mesmo do auto-engano
e da auto-dissimulação. O apreço incondicional dado à verdade é, pois, denunciado
por Nietzsche como um preconceito moral, mais que isso, como o fundamento mesmo
da tradição moral socrático-platônica-cristã, que estabeleceu a verdade como
bem absoluto e elegeu a racionalidade e a consciência como os atributos por
excelência do animal homem. Por ter sido engendrada no seio de um tipo
específico de vida, isto é, o tipo de vida dos indivíduos fracos e decadentes, os
quais possuem como única condição de conservação a vida gregária, essa moral do
rebanho ou moral do ressentimento, como diagnostica
Nietzsche, tem como objetivo primordial justamente conservar aquele tipo
degenerado de vida em detrimento de um tipo mais elevado e superior, porquanto
almejar alcançar, acima de tudo, a verdade, significa querer facilitar ao máximo
a permanência em vida dos fracos.
Assim sendo, o esclarecimento da vontade de verdade como fundamento da
moral do rebanho, é o derradeiro golpe desferido por Nietzsche no seu ataque
contra semelhante código axiológico, dando azo, assim, a possibilidade de uma
transvaloração de todos os valores, a saber, a criação de novos valores que
possam garantir o surgimento de uma vida ascendente, que supere a si mesma.
Ao desfazer toda essa trama, contudo, Nietzsche se vê assaltado por uma
impressionante constatação: o que move a análise psicológica, sustentada pelas
observações fisiológicas e históricas, empreendida por ele, e que leva a moral
à ruína, é, ainda, um preconceito moral que não suporta uma tal mentira e
anseia por vê-la ir a pique em nome de uma honestidade intelectual herdeira
daquela tradição que deseja a verdade a todo custo. Nietzsche, portanto,
sustenta que a própria vontade de verdade, que almeja capturar toda a
efetividade pelo víeis da igualdade, unidade, permanência, indivisibilidade e
eternidade, acaba voltando-se contra si mesma; essa vontade de verdade que
estagna, cristaliza, congela e solidifica tudo que vê, termina por se olhar no
espelho e, como uma Medusa, transforma a si mesma em pedra, ou seja, cancela a
si mesma como inoperante. Como sentencia Nietzsche no prefácio de Aurora (1880/1881) [5]:
“Em nós se realiza, supondo que desejem uma fórmula – a auto-supressão da moral [Selbstaufhebung
der Moral] – – ” (A, Prefácio §4, p. 14).
Por conseguinte, Nietzsche, em seu ataque efusivo à moral, vê-se como
herdeiro daquela tradição socrático-platônica-cristã, como o seu derradeiro e
definitivo rebento, que opera finalmente o último, mais fatal e inexpugnável
golpe que põe fim ao próprio movimento de que faz parte. Tal fato não condena,
evidentemente, a filosofia de Nietzsche ao puro imobilismo e inatividade, muito
pelo contrário, pois é a partir daí que um novo processo pode vir à luz.
Tomando como parâmetro a força criadora da arte, Nietzsche conta instaurar uma
nova possibilidade interpretativa que não estará presa aos grilhões fixados
pela moral, que estará para além da moral, além de uma escala de valores que
nega a vida: – além do bom e do malvado
(Gut und Böse), dualidade
axiológica que tem sua gênese no seio de uma moral de escravos. O filósofo
propõe um significado não mais moral, mas, sim, estético para o existir, no qual o sentido dado à dor, ao
sofrimento e à morte, problema central que ensejou a criação da moral ascética [6],
não será mais proporcionado pela visão do Crucificado, isto é, o sofrimento
como uma via de ascese a um mundo transcendente, mas, sim, pelo símbolo
expresso na figura do deus grego Dioniso, ou seja, o sofrimento como
condicionante da vida, como propulsor de sua própria auto-superação. [7]
I – VERDADE E PODER
Para Nietzsche, tomar a verdade como um bem absoluto é um preconceito
moral, uma crença, um valor, e valorar é sempre interpretar. As interpretações
são postas, na vida orgânica e, mais especificamente, no homem, pelas condições
de existência de multiplicidades de forças que se organizam em unidades. [8] Há
diversas condições de existência, e, portanto, diversas formas de se
interpretar. As unidades (quantum) de
forças, que se encontram em permanente movimento, instauram valores quando,
efetivando-se, entram em contato com outras unidades, classificando-as
hierarquicamente de acordo com os tipos de sensações prazerosas ou
desprazerosas que as mesmas lhes representam, visando, com isso, assimilá-las
ou se deixar assimilar por elas no intuito de conseguir mais poder.
No caso do animal homem, todos os
códigos axiológicos por ele elaborados têm como intuito justamente um aumento
de poder, como esclarece Nietzsche em um fragmento póstumo [9]: “Na
verdade, toda moral é apenas um refinamento das medidas que todo orgânico adota
para adequar-se, alimentar-se e ganhar poder”
(Fragmento póstumo – X 12 [29] do verão de 1883, p. 153). Não obstante,
múltiplas são as formas com que as forças podem se organizar no complexo
orgânico que se chama homem, e cada uma dessas formas de organização representam
condições ímpares de existência. As apreciações, conseqüentemente, correspondem
a necessidades de tipos de vida específicos. Nietzsche considera que, de modo
geral, dois tipos de vida podem, grosso modo, ser destacados dessa
multiplicidade, a saber, a forma de vida ascendente
e a forma de vida decadente.
Uma forma de vida ascendente representa uma unidade organizada pelas forças
saudáveis e superiores de um complexo orgânico. Nesse tipo de existência, a
totalidade interpreta a vida como condicionada pela luta, e seus valores visam
tornar a vida cada vez mais elevada. A moral
dos nobres representa um tal tipo de valoração, nela, saúde, robustez,
força, coragem e amor de si representam a suprema felicidade e os instintos são
vistos como os guias essenciais da ação. Por outro lado, num tipo de vida
fraco, as forças debilitadas que se desagregam no interior de um complexo
orgânico que se tornou decrépito anseiam pelo poder, invertendo, para isso, as
estimativas de valor adequadas a uma vida forte, a fim de conservar as
condições que mantém em vida as naturezas que se tornaram degeneradas. [10] A
moral do rebanho nasce desse tipo de
vida, nessa moral, o estabelecimento da compaixão como suprema virtude, a
renúncia aos instintos e a valorização da razão como guia supremo da ação, tem
como intuito conservar tal tipo de vida fraco, utilizando-se de artifícios para
dar vazão a sua vontade de poder.
Sendo assim, a forma de vida gregária representa a única condição de
sobrevivência para os indivíduos fracos. Ora, a vida gregária tem como
fundamento a comunicação. Assim sendo, a linguagem é elaborada devido a uma
necessidade que brota da fraqueza, seu objetivo primordial é a conservação.
Para garantir sua sobrevivência, a gregaridade precisa fazer previsões, isto é,
estabelecer de antemão o que lhe é nocivo e o que lhe é benéfico. Para isso,
tem como primeiro preconceito moral a igualdade do não igual [11],
mas, nisso, a linguagem procede fazendo falsificações, abstrações, cometendo
injustiças constantes, já que a identidade absoluta das coisas é pura ficção. A
linguagem distorce a natureza das coisas para se tornar “exata”, “verdadeira”,
ignorando diferenças, paralisando as inconstâncias, ordenando o casual, a fim
de torná-los comunicáveis, como sustenta Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos (1888) [12]: “A
linguagem, parece, foi inventada apenas para o que é médio, mediano,
comunicável” (CI, Incursões de um extemporâneo § 26, p. 79). Dessa forma, visto
que isso lhe traz vantagens e garante a sua sobrevivência, a gregaridade estabelece
a verdade como bem absoluto e a identidade como seu fundamento lógico. [13] O
mundo, no entanto, é devir, perenidade, imprevisibilidade, acaso, mudança, a
identidade não se encontra nele em lugar algum. Contudo, sendo a verdade um
bem, isto é, uma condição de sobrevivência para o rebanho, este se viu obrigado
a elaborar um outro mundo, a partir da contraposição direta ao mundo efetivo, a
linguagem foi quem primeiramente operou esse dualismo. Como diz Nietzsche em Humano, demasiado humano [14]
(1878/1880): “A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está
em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que
ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo
restante e se tornar seu senhor” (HHI § 11, p. 21). Inserindo no mundo uma
unidade, previsibilidade, fixidez, que lhe são alheios, a gregaridade garantiu,
assim, sua sobrevivência, malgrado negar a natureza da própria vida como
efetivação de forças que almejam se superar às expensas umas das outras.
A vontade de poder dos fracos tende, pois, a se limitar meramente ao
instinto de conservação [15],
desdobrando-se, assim, em uma vontade de verdade, ou seja, em uma manifestação
de uma vontade de poder debilitada que se satisfaz mediante expedientes e não
legitimamente. Ora, a gregaridade identifica o homem que diz a verdade como o
homem bom em si, porque confiável e previsível [16];
julga, da mesma forma, a natureza das coisas: tudo o que é constante, regular e
permanente, é bom, porque não representa perigo [17],
porque é controlável. Conhecer a “verdade” sobre as coisas é, portanto, “dominar”
as coisas. O que é estabelecido como verdade, contudo, é, para Nietzsche,
apenas uma simplificação, generalização ou falsificação da realidade. Malgrado
isso, é por meio de um tal falseamento que o indivíduo mais fraco se conserva
como animal de rebanho. Mas, se no início a verdade é almejada apenas por conta
de seus benefícios para a gregaridade, ela passa posteriormente, devido a uma
inexorável exacerbação da vontade de verdade, a ser querida por si mesma, como
bem em si, não mais importando o que as suas conseqüências signifiquem para a
gregaridade como um todo ou mesmo para a vida.
II – CONSCIÊNCIA E RAZÃO
É por se verem ameaçados pela inconstância, desordem e falta de sentido
do vir-a-ser, que os indivíduos fracos e malogrados se congregam e instituem a
consciência e a razão como faculdades supremas do homem, porquanto elas
representam o principal meio pelo qual a vontade de verdade faz valer suas
exigências na busca pelo conhecimento “verdadeiro”, garantindo, assim, a
conservação de um tipo degenerado de vida.
A consciência se desenvolveu juntamente com a fundação da linguagem, ou
seja, também por conta de uma necessidade de comunicação. Como esclarece Nietzsche
em A gaia ciência (1881/82/86):
“Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas –
apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não
necessita dela” (GC § 354, pp. 248-249). Para poder se proteger ao abrigo de
uma comunidade, os organismos mais fracos precisam se fazer compreensíveis uns
para com os outros e para si mesmos: “saber” exatamente do que necessitam, a
quem recorrer e como se fazerem entendidos de maneira rápida e precisa. Para
isso, é mister operar simplificações, abreviações, generalizações e
vulgarizações, visto que o pensamento que se torna consciente responde apenas a
uma necessidade gregária, uma necessidade de compreensão sempre mais fácil e inequívoca
das impressões que se desejam comunicar.
Ora, mas, para Nietzsche, o homem é constituído por uma multiplicidade
de forças organizadas em uma unidade. [18] Nele,
o combate se dá principalmente entre os seus impulsos, cada impulso quer
exercer seu domínio mediante a predominância da sua perspectiva avaliadora,
isto é, sua forma de interpretar e lidar com o ambiente externo, tendo como
parâmetro as sensações de prazer ou desprazer que este lhe provoca tendo em
vista um aumento de poder. Todo esse combate entre impulsos se dá, porém, de maneira
subterrânea, como explana Nietzsche: “Por longo período o pensamento consciente
foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a
verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de
maneira inconsciente e não sentida por nós” (GC § 333, p. 221). Somente o
impulso que predomina consegue impor sua perspectiva, tornando-a, porém apenas
em parte, “consciente”. Contudo, essa imposição está em permanente
deslocamento, novos impulsos e novas perspectivas estão constantemente se
alternando no controle do complexo orgânico que é o homem. Sendo assim, no
homem, não há um “eu”, único e sempre igual a si mesmo, que decida livremente
os motivos da ação, como assevera Nietzsche: “[...] um pensamento vem quando ‘ele’,
e não quando ‘eu’ quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva
dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’” (BM § 17, pp. 21-22).
É a partir da ficção da unidade e da identidade do eu, que a razão humana
se desenvolve, isto é, ampliando o alcance de tal ficção e elaborando o
preconceito da unidade e da identidade das coisas. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche faz ver que é a partir do
estabelecimento da norma lógica: “o que é não se torna; o que se torna não é...”
(CI, A “razão” na filosofia § 1, p.25), que se tem início a criação de uma
realidade metafísica por meio do trabalho racional. Isso só ocorre, todavia,
como já foi dito, devido ao condicionamento fisiológico de seres degenerados,
que precisam criar para si a ilusão de permanência e constância como instrumento
de conservação e artifício de dominação. Tal realidade metafísica passa, no
entanto, devido ao seu grau de utilidade para a vida fracassada, a ser tida em mais
apreço do que a própria efetividade. Negando, por necessidades fisiológicas, o
vir-a-ser das coisas, o pensamento metafísico fundado por Sócrates e Platão, na
sua confiança na razão e no conceito de ser
elaborado por ela, passa a procurar os culpados por esse último não ser intuído
na e pela efetividade. Os sentidos, a sensualidade, delata o pensamento metafísico,
são esses culpados, “já tão imorais em
outros aspectos, enganam-nos acerca do verdadeiro
mundo” (CI, A “razão” na filosofia § 1, p. 25). Negando os sentidos como
pérfidos e indignos, o homem torna-se, assim, um animal atrofiado, que visa
desenvolver a razão ao máximo em busca da verdade absoluta, que para ele é o
bem absoluto, porém, negar os sentidos significa negar a própria natureza
humana, a efetividade como vir-a-ser e, conseqüentemente, a própria vida como
condicionada pela mudança.
O mundo transcendente elaborado pelo pensamento metafísico,
fundamentado pela razão, possui sua formulação mais nefasta para a vida na
idéia cristã do “Reino de Deus”. Para Nietzsche, o
cristianismo representa uma negação da vida, algo nascido da fraqueza e do
ressentimento como instrumento de vingança contra a efetividade. A visão de mundo cristã configura-se a partir da prática
do niilismo, que é a lógica da décadence,
tendo como meta caluniar e falsear a realidade como artifício de dominação. Dessa
maneira, elabora-se um novo mundo a partir da completa oposição ao mundo
imanente, a saber, o “Reino dos Céus”. Como explica Nietzsche n’O Anticristo (1888) [19]:
“– Esse mundo de pura ficção
diferencia-se do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato de esse
último refletir a realidade, enquanto
ele falseia, desvaloriza e nega a realidade” (AC § 15, p. 20-21). Com
semelhante mundo fantasioso, o fraco vinga-se, assim, da realidade, que para
ele se tornou insuportável, excluindo de tal mundo qualquer fator que lhe seja
nocivo e declarando-o como o verdadeiro mundo, aquele que lhe aguarda como
derradeira recompensa, mantendo-se, deste modo, na expectativa de um futuro
domínio.
Nietzsche
sustenta, pois, que o cristianismo é tributário do platonismo, que o dualismo
de Platão é levado às últimas conseqüências nessa religião em que o mundo
efetivo é totalmente esvaziado de valor. Daí a famosa sentença em Além de bem e mal: “cristianismo é
platonismo para o ‘povo’” (BM, Prólogo, p. 8). Quando se cria deliberadamente
um mundo imaginário que é o inverso do mundo efetivo, ou seja, fixo,
invariável, eterno, desprovido de males e dificuldades, assim como aquilo que é
o belo, bom e verdadeiro na metafísica de Platão, reprova-se a vida em sua
totalidade, visto que as próprias condições para que ela se efetue são, dessa
forma, rejeitadas, pois a vida se constitui mediante antagonismo, isto é,
conflitos de forças, superações de obstáculos. Entretanto, tal artifício só se
torna necessário para naturezas que já malograram na vida, para àqueles seres
fracos que vêem no próprio curso natural das coisas um ambiente no qual sua
sobrevivência torna-se impossível. Por conta disso, Nietzsche assevera: “Quem
tem motivo para furtar-se mendazmente
à realidade? Quem com ela sofre. Mas
sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada...” (AC § 15, p. 21). A vida é, deste modo,
categoricamente destituída de todo valor e sentido pela perspectiva cristã, que
transfere todo valor dado a única vida possível, neste mundo, para uma outra
vida, em um mundo absolutamente fictício, retalhado, emasculado, anêmico e
atrofiado, portanto, para uma vida irrealizável e ilusória. Como explica
Nietzsche: “Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ – no
nada –, despoja-se a vida do seu centro de gravidade” (AC § 43, p. 50).
Conseqüentemente, por dividir o mundo em dois, o cristianismo conduz a
humanidade numa via inexorável em direção ao niilismo, uma vez que tal vontade
de nada, em que os supremos valores que fundamentam a vida perdem todo o
sentido, constituí-se a própria lógica da décadence.
[20]
Isso se deve ao fato de que no cristianismo a vontade
de poder se transmuta em incapacidade
para o poder, vacilando e se tornando débil, cessando de buscar superação,
dando preferência unicamente a conservação, sendo direcionada a um reino de
pura abstração, puro conceito, o que representa um mero desvio para o louvor do
nada, visto que “o homem preferirá ainda querer
o nada a nada querer...” (GM III § 28, p. 149) e no conceito cristão de
Deus “o nada [é] divinizado, a vontade de nada canonizada!” (AC § 18, p. 23).
Todavia, se Deus foi eleito
pelo pensamento metafísico, cujo fundamento é a razão, e pela religião cristã,
como a verdade suprema, a mesma racionalidade filosófica, a mesma vontade de
verdade que tornou possível a criação de uma tal ficção, acaba adquirindo tanta
força e independência que se vê obrigada a reconhecer esse Deus como aquele
“nada divinizado”, como a mentira suprema: é chegada a hora, portanto, de se
entoar um “Requien aeternam deo”,
pois já se ouvem os “barulhos dos coveiros” a trabalhar – uma vez que “Deus
está morto!” (GC § 125, p. 148).
III – A
AUTO-SUPRESSÃO DA MORAL
Com a constatação da morte de Deus, a vida declinante que predomina em
todo o mundo ocidental não é ainda superada, pois um perigo ainda mais
abominável para o surgimento de uma vida ascendente aparece no horizonte, a
saber, o niilismo. Como verifica
Nietzsche: “O niilismo está à porta: de onde nos chega esse hóspede, que é o
mais perturbador de todos?” (Fragmento póstumo – XII 2 [127] (2) de outono de
1885 – outono de 1886, p. 224). Para Nietzsche, esse hóspede mais que
indesejável surge da própria lógica interna da décadence. Sendo fruto de uma degeneração fisiológica, a décadence anseia legitimar uma
perspectiva que visa conservar a vida dos organismos fracos. Sendo assim, a
negação do vir-a-ser mediante o preconceito da identidade das coisas estabelece
a verdade como bem absoluto. Contudo, essa vontade de verdade acaba suplantando
o próprio instinto de conservação e torna-se uma potência independente. Com
isso ela se volta contra si mesma ao se voltar contra o Deus cristão, tido como
a verdade absoluta, e, por conseguinte, contra toda interpretação moral socrático-platônica-cristã
da existência. Dessa maneira, o niilismo, a vontade de nada, se apresenta. Sem
Deus como fundamento da moral, todo valor é questionado, nada mais faz sentido,
tudo passa a ser tido como debalde. A ciência passa a ser vista, assim, como
única forma legítima de interpretação do existir, como solução do niilismo. Não
obstante, se o fundamento último da moral socrático-platônica-cristã, é a
crença no valor incondicional da verdade, isto é, na estimativa moral de que a
verdade é o bem em si, a vontade de verdade também passa a questionar a si
mesma e se auto-suprime. E, como a ciência também é movida pela vontade de
verdade, ela também perde qualquer pretensão de fundamentar novos valores,
porquanto ela ainda obedece, inconscientemente, aos valores de uma forma de
vida decadente. Como sustenta Nietzsche em Genealogia
da moral (1887):
– A partir do momento em que a fé no Deus do ideal
ascético é negada, passa a existir um
novo problema: o problema do valor
da verdade. – A vontade de verdade requer uma crítica – com isso determinamos
nossa tarefa –, o valor da verdade será experimentalmente posto em questão... (GM III § 24, p. 140)
Tendo isso em vista, Nietzsche atesta que toda a filosofia ocidental
sempre trabalhou a serviço de uma moral decadente, de uma moral do
ressentimento, justamente porque, a despeito das querelas intermináveis
próprias de todo sistema filosófico, algo sempre manteve unidos todos os
filósofos ocidentais como que sobre um abrigo, a saber, a crença no valor da
verdade. Como diz Nietzsche: “Até agora não houve filósofo em cujas mãos a
filosofia não se tivesse tornado uma apologia do conhecimento; ao menos nesse
ponto cada um é otimista, ou seja, que deve ser atribuída ao conhecimento a mais
alta utilidade” (HHI § 6, p. 19). Sócrates é o grande modelo desse otimismo,
pois para ele a ignorância era o mal em si e só por conta dela o homem era
infeliz e defeituoso. Foi o exemplo funesto e irremediável de Sócrates que
marcou o início de uma desagregação dos valores vitais, ou seja, seu
sacrifício, seu martírio em nome da
verdade. Assim, Nietzsche já constatara no Nascimento da tragédia (1871) [21]: “[...]
Sócrates [é] o protótipo do otimista
teórico que, na já assinalada fé na escrutabilidade da natureza das coisas,
atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina universal e percebe
no erro o mal em si mesmo” (NT § 15, p. 94). Sócrates é, portanto, para
Nietzsche, o grande responsável pelo declínio da sabedoria grega, que mediante
uma ilusão artística, ou seja, a tragédia, conseguiu superar o pessimismo
advindo de uma visão profunda da “essência” das coisas. Como esclarece
Nietzsche: “[No Nascimento da tragédia]
eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos de dissolução
grega, como pseudo gregos, antigregos” (CI, O problema de Sócrates § 2, p. 18).
Dessa forma, com Sócrates e Platão, a vontade de verdade teve a sua primeira
grande manifestação e legitimação.
O aforismo 344 da Gaia Ciência,
pertencente ao livro V da obra (escrito, assim como os prefácios e Além de bem e mal, em 1886), levanta o
questionamento sobre o que é essa vontade de verdade: “Será a vontade de não se deixar enganar? Será a vontade de
não enganar?” (GC § 344, p. 235).
Nietzsche responde afirmativamente a essas perguntas, porém argumenta que não
querer enganar, também inclui não querer enganar a si mesmo. Mas por que o
engano é tão indesejável a ponto do auto-engano
ser repudiado com a mesma força e determinação que àquele dirigido a outrem ou provindo
de outrem? Ora, percebe-se que ninguém quer se deixar enganar porque crê que
isso lhe seria prejudicial, nocivo, perigoso. No entanto, como sabê-lo
realmente: a mentira, a aparência e o engodo mostram-se constantemente tão
necessários para a vida quanto o seu oposto. Portanto, a convicção de que a
verdade é proveitosa nada mais é do que um mero preconceito. “Por conseguinte”,
atesta Nietzsche, “‘vontade de verdade’ não significa ‘Não quero me deixar
enganar’, mas – não há alternativa – ‘Não quero enganar, nem sequer a mim
mesmo’: - e com isso estamos no terreno
da moral” (GC § 344, p. 236). Deste modo, sem ter qualquer fundamento na
efetividade, a vontade de verdade, que busca o conhecimento verdadeiro por
atribuir-lhe um valor inestimável, assenta-se sobre um tipo de valoração
fisiologicamente determinado.
No prefácio de Aurora, Nietzsche
se confessa ainda um herdeiro dessa vontade de verdade. A obra representa o
grande libelo do filósofo contra os juízos da moral ocidental. A confiança na
moral socrático-platônica-cristão é, em Aurora,
derrubada, contudo, isso não se faz desinteressadamente,
mas, sim, como admite Nietzsche: “Por
moralidade!” (A, Prefácio § 4, p. 13). Nietzsche percebe que, mesmo para
ele, ainda se dirige um “tu deves”, porquanto, devido a uma probidade
intelectual: “[...] não desejamos voltar ao que consideramos superado e caduco,
a algo ‘indigno de fé’, chame-se ele Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao
próximo [...]” (Idem). [22]
Apenas como “criatura da consciência”
diz Nietzsche se considerar parente da tradição filosófica própria do espírito
alemão, que tem na honestidade intelectual sua norma mais inconscientemente
enraizada. Nietzsche se declara, pois, juntamente com os “alemães atuais e
tardios”:
[Como sucessores] da retidão e piedade alemãs de
milênios, embora como seus rebentos mais discutíveis e derradeiros, nós,
imoralistas, nós ateus de hoje, e até mesmo, em determinado sentido, como seus
herdeiros, como executores de sua mais íntima vontade, de uma vontade
pessimista, que não teme negar a si mesma, porque nega com prazer! Em nós se realiza, supondo que desejem uma fórmula – a auto-supressão da moral. – – (Idem, pp. 13-14).
É com o monge alemão Martinho Lutero, que esse desdobramento da vontade
de verdade, isto é, a honestidade intelectual, enraíza-se no espírito alemão. A
sentença que Lutero pronunciou na assembléia de Worms, em 1521, quando se negou
a abdicar de suas idéias acerca da doutrina cristã, é o verdadeiro lema da
consciência intelectual alemã, a saber: “Aqui estou eu! Não sei agir de outra
forma!” (apud GC § 146, p. 158). [23] A
análise das fontes bíblicas, empreendida por Lutero, deu início a uma forma de
se pensar até então inédita, tendo como sua principal diretriz a liberdade de
pensamento e a probidade intelectual em nome da veracidade, a despeito de tal
postura ser, contudo, em Lutero, contrária à razão, sustentando-se numa fé
cega, absurda e pietista, na crença em Deus como a suprema verdade: “Credo quia absurdum est” [24]
[creio porque é absurdo]. É claro que
Nietzsche condena severamente Lutero por ter restaurado o cristianismo, quando
este sucumbia e possibilitava, a partir de sua própria desagregação, o triunfo
dos valores afirmadores da vida durante a Renascença. [25]
Todavia, a Reforma Protestante se constituiu na grande formadora da cultura
alemã, daí porque toda a filosofia alemã agiu sempre como mantenedora daquela probidade
intelectual, sob o jugo, portanto, desse último e mais fatal desenvolvimento da
vontade de verdade.
A despeito de a honestidade intelectual ser um elemento característico da
cultura alemã, não se deve, segundo Nietzsche, somente aos alemães a vitória
sobre a crença em Deus. Como assegura o filósofo: “[...] o declínio da crença
no Deus cristão, a vitória do ateísmo científico, é um evento de toda a Europa,
no qual as raças todas devem ter seu quinhão de mérito e honra” (GC § 357, p.
255). É como bom europeu, afirma Nietzsche, que Schopenhauer com seu pessimismo
acerca do valor da existência, manteve-se, honestamente, ateu. A descrença em Deus
era, para Schopenhauer, pressuposto de sua filosofia. Mas essa retidão
intelectual “que finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus...” (Idem, p. 256), não é um fenômeno
acidental, sua origem remonta a uma “educação para a verdade que dura dois mil anos”
(Loc. Cit.), ou seja, ao próprio
cristianismo, a sua lógica intrínseca. Como verifica Nietzsche:
Vê-se o que
triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o
conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza
confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência
científica, em asseio intelectual a qualquer preço (Idem).
A própria vontade de verdade, entretanto, após recusar o seu grande
paradigma, isto é, Deus, como uma farsa, dando vazão ao seu procedimento
natural, tem como último e mais fatal movimento a volta sobre si mesma, e,
dessa forma, se auto-anula, ao constatar que também repousa sobre um
preconceito moral, ou seja, sobre uma mentira: o preconceito de que a verdade é
um bem. Como Nietzsche problematiza no importante aforismo primeiro de Além de bem e mal:
A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não
poucos riscos, a célebre veracidade que até agora todos os filósofos
reverenciaram: que questões essa vontade de verdade não nos colocou! [...] Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós aspira realmente “à verdade”?
– De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem dessa vontade
– até afinal parar completamente ante uma questão ainda mais fundamental. Nós
questionamos o valor dessa vontade.
Certo, queremos a verdade: mas por que não, de preferência, a inverdade? Ou a
incerteza? Ou a insciência? (BM § 1, p. 9).
Nietzsche percebe, pois, que, quando ele se pergunta sobre o valor da
verdade, é ainda a própria vontade de verdade que, almejando ir ao fundo de
todas as coisas, força-o a fazê-lo. Por que se desejaria saber se a verdade tem
ou não um valor legítimo caso já não estivesse pressuposto, de antemão, que a
verdade das coisas deve vir à tona a todo custo? E, ao se perguntar por que
deseja tanto saber a verdade, a própria vontade de verdade, manifesta em
Nietzsche, descobre ser fundada no juízo moral de que a veracidade seria o bem
supremo e, não suportando o fato de ter sido erigida por um tal erro, suprime a
si mesma – por dever moral. Assim
sendo, efetiva-se finalmente a
auto-supressão da moral.
Mas será que a verdade pode ser realmente prejudicial para a vida?
Nietzsche responde que sim, sobre vários aspectos. Isso porque a vida é continuamente
condicionada pelo erro, pela ilusão. “Algo pode ser verdadeiro”, adverte o
filósofo, “apesar de nocivo e perigoso no mais alto grau” (BM § 34, p. 41). E em
Humano, demasiado humano, ele
aconselha: “Você [espírito livre] deve apreender a injustiça necessária de todo pró e contra, a
injustiça como indissociável da vida, a própria vida como condicionada pela perspectiva e sua injustiça” (HHI, Prefácio § 6,
p. 13).
Em “Da utilidade e desvantagem da história pra a vida” (1874), a segunda
das Considerações Extemporâneas [26],
Nietzsche já defendia a necessidade do engano para a preservação e promoção da
vida. A história não deveria, de acordo com Nietzsche, tornar-se uma ciência
pura, isto é, ser buscada apenas para a obtenção da verdade em si. Ora, para
Nietzsche, muita coisa sobre o passado deve permanecer oculta para o próprio
bem estar da vida humana. O filósofo evoca, para isso, a faculdade ativa do esquecimento da qual os indivíduos mais
fortes e robustos são dotados. A tão invejada felicidade dos animais deve-se
justamente a sua capacidade de viverem no esquecimento. Da mesma maneira, um
indivíduo só consegue ser feliz se ele for capaz de esquecer constantemente
vários episódios de sua história pessoal. A felicidade depende, assim, do
quanto alguém é capaz de agir e pensar de forma a-histórica. Esquecer é, de acordo com Nietzsche, algo tão vital
quanto dormir. Como ele esclarece: “Esquecimento pertence a toda ação, assim
como luz e trevas pertencem igualmente a vida de todas as coisas orgânicas” [27]
(Co. Ext. II, Prefácio). Assim sendo, seria possível para um indivíduo levar
uma vida sem memória, e até mesmo uma vida feliz, porém sem o esquecimento a
vida não poderia se efetivar, visto que para se agir é necessário situar-se,
ainda que momentaneamente, numa perspectiva a-histórica, porque sem um certo véu de ilusão com que tal perspectiva
encobre a vida, uma ação não poderá ser efetivada, o novo não poderá ser
criado. De tal modo agem os indivíduos mais saudáveis e aptos para as grandes
ações: todo o passado é por eles digerido e transformado em “sangue”, em
substância plasmática, energética, que os impulsiona para a ação, aquilo que no
passado não pode ser subjugado, eles sabem como esquecer. Por conseguinte,
Nietzsche defende que: “[...] para a
saúde de um indivíduo em particular, de um povo, e de uma cultura o a-histórico
e o histórico são igualmente essenciais” [28]
(Co. Ext. II § 1). É necessário, portanto, voltar-se para o passado para se
adquirir força criadora, porém, o ponto de vista histórico precisa ser contido
por um ponto de vista a-histórico, que permita, sempre que necessário, o esquecimento
daquilo que já ocorreu. Dessa forma, também o desejo de conhecer, a todo custo,
a verdade sobre a história, representa um perigo incomensurável para a
vida.
Não obstante, Nietzsche não nega o valor da procura da “verdade” caso
essa seja empreendida em prol da vida, o problema é quando a verdade é tomada
como um bem em si, retirando todo valor que se possa dar, igualmente, a ilusão
e ao erro para a promoção da vida, visto serem os mesmos ainda mais essenciais
para a esta última do que a própria verdade. Como esclarece o filósofo: “Com
todo valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, dessinteressado: é
possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à
cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida” (BM § 2, p. 10).
Sendo assim, Nietzsche contrapõe à vontade de verdade a vontade de engano (Wille zur Täuschung) [29],
isto é, uma vontade de traçar limites para o saber em nome da preservação e da
elevação da vida, que continuamente deve ser resguardada de uma indecente
vontade que almeja desnudar todas as coisas, mesmo que para isso a vida tenha
que sofrer danos terríveis e irreparáveis. Deve-se atentar, evidentemente, para
o fato de que também há ilusões nocivas para a existência, assim como o é a
própria estimativa de que a verdade seja um bem. “A falsidade de um juízo”,
alega Nietzsche, “não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele
[...] A questão é em que medida ele promove e conserva a vida” (BM § 4, p. 11).
O que Nietzsche sustenta é que, para o surgimento de uma vida elevada, forte e
saudável é imprescindível que o engano seja, em grande medida, desejado. Como
patenteia o filósofo:
– Perdoem-me a brincadeira dessa caricatura e
expressão sombria: pois eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a
avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado, e guardo ao menos alguns
socos para a fúria cega com que os filósofos resistem a ser enganados. Por que não? Não passa de um preconceito moral
que a verdade tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais
mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria
nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas (BM § 34,
p. 39).
Eis porque a ciência moderna não representa um tipo de conhecimento no
qual a vida se vê resguardada dos malefícios de uma moral decadente. Na
terceira dissertação de Genealogia da
moral, ao se questionar “de onde procede o tremendo poder do ideal
ascético, do ideal sacerdotal, embora ele seja o ideal nocivo por excelência,
uma vontade de fim, um ideal de decadénce”
(EH, Por que escrevo tão bons livros: Genealogia da moral, p. 97), Nietzsche
verifica que o problema do sentido do sofrimento é o que garante o sucesso da
moral do ressentimento, que tem no ideal ascético o modelo do tipo homem, ou
seja, a própria prática ativa da negação da vida como objetivo maior. O sentido
do sofrimento fornecido pelo ideal ascético, ou seja, o sofrimento como um
veículo de ascensão a uma outra vida, livre de todas as mazelas e reveses, faz
com que a penúria seja suportada, e até mesmo que a dor seja deliberadamente
buscada como passagem para aquela realidade transcendente, de pura abstração,
de puro nada. Mas todo o sucesso da moral ascética deve-se apenas a “faute de mieux” [falta de coisa melhor]
(EH, Loc. Cit.), isto é, porque
nenhuma outra interpretação para o sofrimento havia logrado ainda se impor.
Todavia, de acordo com Nietzsche, a ciência moderna não representa uma
alternativa sustentável para o ideal ascético. Como sentencia o filósofo:
Não! Não me venham com a ciência, quando busco o
antagonismo do ideal ascético, quando pergunto: “onde está a vontade oposta, na
qual se expressa o seu ideal oposto?”.
Para isso a ciência está longe de assentar firmemente sobre si mesma, ela antes
requer, em todo sentido, um ideal de valor, um poder criador de valores, a cujo
serviço ela possa acreditar em si
mesma – ela jamais cria valores [...] Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se
no mesmo terreno – já o dei a entender –: na mesma superestimação da verdade
(mais exatamente: na mesma crença na inestimabilidade,
incriticabilidade da verdade), e com
isso são necessariamente aliados – de modo que, a serem combatidos, só podemos
combatê-los e questioná-los em conjunto (GM III § 25, pp. 140-141).
Deste modo, como a ciência moderna representa apenas o desdobramento de
um arcabouço axiológico proveniente de um modo de vida malogrado, ela não pode
se tornar, por si própria, criadora de novos valores que exaltem e que
enalteçam a vida. É necessário antes que a ciência se submeta a uma nova forma
de valoração, visto que ela mesma é incapaz de criar valores. A “Gaia Ciência” proposta por Nietzsche
diferencia-se, assim, diametralmente daquele modelo de ciência tradicional, ela
antes representa uma jovial segunda inocência, ou seja, uma volta livre e
espontânea à ingenuidade, um modo de ser e agir que alegremente traça limites
para o questionamento do mundo, para a preservação e afirmação da existência.
Como mostra o filósofo: “Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós
sabedores: oh, como hoje aprendemos a bem esquecer, a bem não saber, como artistas” (GC, Prefácio § 4, p. 14). A ciência
deve, dessa forma, ser utilizada como instrumento, como recurso a favor da
vida, mas, para isso, ela deve antes obedecer a uma potência artística. Somente a arte pode, assim, representar um
contraponto legítimo para a moral ascética. Como esclarece Nietzsche:
[...] a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência
a seu favor, opõem-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético:
assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a
Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro
antagonismo (GM III § 25, p. 141).
No prefácio de Humano, demasiado,
humano, livro no qual Nietzsche rompe com os seus antigos mestres e
abandona as suas antigas esperanças, procurando trilhar um caminho próprio, o
filósofo confessa que foi obrigado, devido à solidão de sua empresa na luta
contra os valores constituídos, a criar
artisticamente companheiros de luta: Schopenhauer, Wagner, os gregos, e os
alemães e o seu futuro. Pois, como ele afirma: “[...] a vida não é excogitação
da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão” (HHI, Prefácio § 1, p. 8).
Não é, todavia, a qualquer arte que Nietzsche se refere, pois a arte
também pode servir para glorificar os valores decadentes. Nietzsche procura uma
arte dionisíaca na qual a vida é
afirmada em sua totalidade. Assim sendo, o símbolo do deus Dioniso, celebrado
na tragédia grega, representa, para o filósofo, a suprema afirmação da vida e
da efetividade com todos os seus aspectos e com todas as suas contradições, que
não são vistas como elementos negativos, mas necessários para que a vida possa
se superar. Como evidencia Nietzsche: “O dizer Sim à
vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos [...] a isso chamei
dionisíaco” (CI, O que devo aos antigos § 5, p. 106). Essa visão é francamente
oposta ao símbolo do Crucificado, em que a grande inimizade contra a vida se
traduz e se exibe com toda o seu rancor e pendor para o ódio vingativo contra o
vir-a-ser: “[...] a cruz como distintivo da mais subterrânea conspiração que já
houve – contra saúde, beleza, boa constituição, bravura, espírito, bondade de
alma, contra a vida mesma...” (AC § 62, p. 79). Não é à toa, portanto que
Nietzsche encerra a sua autobiografia, Ecce
Homo (1888), com a sentença: “– Fui
compreendido? – Dionísio contra o Crucificado...” (EH, Por que sou um destino § 8, p. 117).
Dessa forma, desfaz-se toda tentativa de
conferir à filosofia de Nietzsche um caráter meramente destrutivo e negador.
Sua crítica à vontade de verdade, constitui-se na sua última tarefa enquanto
herdeiro de uma tal vontade, de um tal preconceito moral, operando, assim, a
auto-supressão da moral. Tal fenômeno possibilita, contudo, a instauração de um
novo modelo interpretativo para a existência, no qual um olhar sadio sobre a vida,
uma potência artística que brota diretamente da saúde e da plenitude, uma
afirmação dionisíaca da vida, deve reger todas as formas de olhares, cuja
tarefa primordial será a criação de novos valores, valores que possibilitem a
elevação da vida. Destarte, a religião, a filosofia, a ciência, a própria arte,
e mesmo a moral, não terão mais um valor em si mesmas, mas sim enquanto instrumentos
para a preservação e para a promoção da vida, porque todas essas formas do
saber humano têm potenciais tanto para ser voz da saúde quanto da debilidade. A
vontade de verdade, representava, pois, o grande obstáculo para a afirmação da
vida enquanto superação de forças, somente após sua superação, têm-se início a
criação de novas tábuas de valores, uma transvaloração de todos os valores. Daí
porque Nietzsche assevera:
Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de
“verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade – nos
aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados,
profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o
véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente
a tudo, compreender e “saber” tudo. “É verdade que Deus está em toda parte?”,
perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” – um sinal para
filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu
por trás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher
que tem razões para não deixar ver suas razões? [...] Oh, esses gregos! Eles
entendiam do viver! Para isto é
necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, adorar a aparência,
acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo
Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso – gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso – artistas? (GC, Prefácio § 4, pp. 14-15).
Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso – gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso – artistas? (GC, Prefácio § 4, pp. 14-15).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crítica de Nietzsche à vontade de
verdade revela que todo tipo de valoração tem uma origem extra-moral, ou seja,
toda valoração é uma interpretação condicionada fisiologicamente. Querer
conhecer a verdade a todo custo é um preconceito moral que surge de um tipo de
vida degenerada. Os organismos fracos se sentem constantemente ameaçados pelo
vir-a-ser e elaboram, por ressentimento, vingança e artifício de dominação, a
ficção da identidade das coisas, do ser.
Com isso, todavia, a vida é despojada de todo o seu valor, pois é justamente
pela mudança, pelo combate perene de forças, que a vida pode se efetivar. O
mundo transcendental elaborado pela metafísica como o único e verdadeiro mundo,
onde o ser se realizaria, acaba
servindo como parâmetro de negação do mundo efetivo. Ora, vida e aparência se
correlacionam, negar a ilusão, a mentira, é negar a própria vida, porquanto
está última é condicionada pelo véu da aparência. Um tipo de vida saudável,
robusta e ascendente, vê na arte a única maneira legítima de se interpretar a
existência. Encarar a arte como potência criadora de valores que exaltam e
louvam a vida é, para Nietzsche, a única forma de promover e elevar ao máximo a
vida, mediante uma transvaloração de
todos os valores.
[1]
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e
do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, § 46, p. 48. Doravante indicar-se-á a obra com a sigla BM, seguida do
número do aforismo e da página.
[2] “’Vontade de verdade’ é como se
chama para vós, ó mais sábios, o que vos impele e vos torna fervorosos?” (NIETZSCHE, Friedrich. “Assim falou
Zaratustra”. In: Obras incompletas. Tradução Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983, II, “Da superação de
si”, p. 237).
[3] Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Cinco prefácios para cinco livros não
escritos. Tradução e prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras,
1996, Prefácio de “Sobre o PATHOS da verdade” pp. 25-33.
[4]
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Obras incompletas.
Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,1983, § 1, p.
46.
[5]
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora:
reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Daqui para frente, a obra será
indicada pela sigla A, seguida do número do aforismo e da página.
[6]
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, III § 28, p.
148-149. Agora, indicado com a sigla GM,
seguida do número da dissertação, aforismo e página.
[7]
Cf. NIETZSCHE, Friedrich.
“O eterno retorno”. In: Obras incompletas.
Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1983, §1052
[Fragmento póstumo – XIII 14 [89] da primavera de 1888], p. 394.
[8] Para
uma leitura nesse sentido, Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Tradução Oswaldo
Giacoia Júnior. São Paulo: Annablume, 1997.
[9]
NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria para
depois de amanhã: seleção de fragmentos póstumos por Heinz Friedrich.
Tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. De agora em diante,
referido no corpo do texto genericamente como “Fragmento póstumo”, seguido da
numeração convencional para os fragmentos (estabelecida pela edição
Colli/Montinari das Obras Completas de Nietzsche), do período em que foi
escrito e do número da página.
[10] Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence
fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard
Wagner”. In: Cadernos Nietzsche, n.
6, São Paulo, 1999, pp. 11-30.
[11]
“Mas a tendência predominante de tratar o que é semelhante como igual – uma tendência ilógica, pois nada é
realmente igual – foi o que criou todo o fundamento para a lógica” (A gaia ciência § 111, p. 139, grifo
nosso). Cf. também: NIETZSCHE,
Friedrich. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Obras
incompletas. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural,1983, § 1, p. 48. E Humano.
Demasiado humano § 18, pp. 27-28.
[12]
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos
ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Indicado, a partir daqui,
com a sigla CI, seguida do título do capítulo, número do aforismo e da página.
[13] Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e
posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, § 111, p.
139. A partir de agora, indicado pela sigla GC, seguida do número do aforismo e
da página.
[14] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para
espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. Doravante indicado com a sigla HHI, seguida do
número do aforismo e página.
[15] De acordo com Nietzsche: “Uma criatura viva quer
antes de tudo dar vazão a sua força –
a própria vida é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das
indiretas, mais freqüentes conseqüências
disso” (BM § 13, p. 19). Não obstante, defende o filósofo, é mister atentar
para o fato de que: “Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado
indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que
tende a expansão do poder [...]” (GC
§ 349, p. 243).
[16]
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Obras incompletas.
Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,1983, § 1, p.
49.
[17] Cf. GC
§ 355, pp. 250-251.
[18]
Cf. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina
da vontade de poder em Nietzsche. Tradução Oswaldo Giacoia Júnior. São
Paulo: Annablume, 1997, p. 77.
[19] NIETZSCHE, Friedrich. O
Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos
de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. Doravante indicar-se-á a obra com a sigla AC,
seguida do número do aforismo e da página.
[20] Cf. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Labirintos da alma: Nietzsche e a
auto-supressão da moral. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
[21] NIETZSCHE, Friedrich. O
nascimento da tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. Tradução, notas e posfácio J. Guisburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Doravante indicado pela
sigla NT, junto com o número do aforismo e da página.
[22] Em Humano,
demasiado humano, Nietzsche, no mesmo sentido, também alega: “Mas
certamente a frivolidade ou a melancolia, em qualquer grau, é melhor do que uma
meia-volta ou deserção romântica, do que uma aproximação ao cristianismo sob
qualquer forma: pois no presente estado do conhecimento já não é possível nos
relacionarmos com ele sem manchar irremediavelmente nossa consciência intelectual e
abandoná-la diante de nós mesmo e dos outros” (HHI § 109, p. 87).
[23] O
próprio Nietzsche não hesita em utilizar essa expressão, de forma ligeiramente
modificada e mesmo literalmente, em várias passagens de sua obra como uma
espécie de palavra de ordem. Cf., por exemplo, GC, Prefácio § 3, p. 13 e EH,
Por que escrevo tão bons livros § 2, p. 55.
[24] Cf. A,
Prefácio § 3, p. 12.
[25] Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo:
como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. “Por que escrevo tão bons livros: o Caso
Wagner” § 2, p. 104. Daqui para frente, a obra será referida pela sigla EH,
seguida do título do capítulo, do número do aforismo e da página.
[26] NIETZSCHE, F. Untimely meditations: on the use and abuse of history for life. Translated by Ian C.
Johnston. Liberal Studies Department. Malaspina University-College, s/d.
Doravante indicado como
Co. Ext. II, seguido do
aforismo, sem referência a página (texto em formato digital, sem formatação
definida).
[27] [Forgetting
belongs to all action, just as both light and darkness belong in the life of
all organic things].
[28] [(…) for the
health of a single individual, a people, and a culture the
unhistorical and the historical are equally essential].
[29] Cf.
BM § 2, p. 9.
sábado, 24 de novembro de 2012
MINHA RELIGIÃO, POR LEV TOLSTÓI (TRECHOS)
Lev Tolstói em sua propriedade em Iásnaia Poliana, 1908 |
Minha Religião, por Lev Tolstói (trechos)
Contribuição para uma genealogia de O Anticristo
Apresentação,
tradução e notas de Allan Davy Santos Sena
Doutorando em Filosofia
pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp
Bolsista CNPq
(allandavy@hotmail.com)
Apresentação
O
ensaio Ma Religion, de Tolstói, não
foi publicado na Rússia por ter sido censurado pelo Estado, sendo publicado
diretamente na França em uma tradução corrigida e aprovada pelo autor. Por
conta disso, o livro não consta em praticamente nenhuma das edições de obras
completas do romancista, que geralmente adotam como critério que o texto tenha
sido publicado em língua russa, ainda que algumas cópias do manuscrito original
em russo tenham sido feitas e circulado entre os seguidores de Tolstói. Nietzsche
leu esse ensaio em sua versão francesa em Nice, nos primeiros meses de 1888, imediatamente após os malfadados
esforços empreendidos com vistas à produção de sua planejada obra Vontade de poder: ensaio de uma
transvaloração de todos os valores, e que haviam resultado finalmente no
abandono deste projeto por parte do filósofo. [1]
Nos fragmentos póstumos 11 [236] a 11 [282] de novembro de 1887 - março de 1888, o filósofo
resume, toma notas, copia e traduz diversas passagens de Ma Religion, e, em alguns momentos, faz esboços e tentativas de
interpretação das idéias expostas na obra. Esse material serviu como base para
diversos elementos da crítica ao cristianismo feita em O Anticristo. Vários desses apontamentos (12 no total) foram
editados pela irmã do filósofo, Elizabeth Föster Nietzsche, como se fossem
autênticos aforismos do filósofo, e
publicados no infame embuste produzido por ela, ou seja, a pretensa “Vontade de poder”, por ela organizada.
Diversos intérpretes que alegam que Nietzsche se contradiz em sua crítica ao
cristianismo tiveram a “Vontade de poder” como base, e, portanto, assumiram que
muitas das posições defendidas por Tolstói, um cristão “herético”, eram as de
Nietzsche, como é o caso mais notável de Karl Jaspers e Heidegger. Contudo, é
somente em outros fragmentos póstumos e, acima de tudo, em O Anticristo, que Nietzsche fará uma apropriação das teses
defendidas por Tolstói em Ma Religion,
conferindo às mesmas, entretanto, nesse movimento, um significado novo,
original e próprio ao seu pensamento.
Entre essas notas, uma das únicas que não se limitam a reproduzir as idéias de
Tolstói é o fragmento 11 [251] de novembro de 1887 - março de 1888, redigido
por Nietzsche em primeira pessoa, no qual ele afirma jamais ter sido cristão uma só hora de sua vida, tal fragmento foi
convenientemente suprimido da segunda edição da “Vontade de poder”, a mesma utilizada por Jaspers, Heidegger e
vários outros intérpretes.
O ensaio
Ma Religion pertence ao período do chamado “segundo Tolstói” [2],
isto é, o Tolstói posterior à sua famosa conversão ocorrida entre os seus setenta e oitenta anos, a partir da qual ele aderiu a um cristianismo de caráter anárquico e radical , cuja personificação mais patente ele encontrava entre os camponeses russos. Nessa fase, Tolstói renegou todas
as suas antigas convicções a respeito da vida e da natureza da obra de arte , renegando livros que o tornaram mundialmente famoso, como Guerra e Paz (1868) e Ana Karenina
(1875), como vãs futilidades. O cristianismo professado por Tolstói tem como fundamento
absoluto a crença de que a resposta pela não-violência
constitui a essência dos ensinamentos de Cristo e que, por conseguinte, toda forma institucional, eclesiástica do cristianismo é necessariamente contrária a esses ensinamentos, já que eleva seus alicerces por meio
de procedimentos inevitavelmente coercitivos.
As passagens
de Ma Religion aqui traduzidas foram
escolhidas, em sua maior parte, com base na seleção presente nas notas do
volume dedicado aos fragmentos póstumos de Nietzsche do outono de 1887 a março
de 1888 publicado pela Gallimard: Nietzsche, Friedrich. “Fragments posthumes: Automme 1887 - Mars 1888”. In: Œuvres
philosophiques complètes. Textes et variantes établis par G. Colli et M. Montinari, traduits de
l’allemand par Pierre Klossowski et
Henri-Alexis Baatsch. Paris: Galimard, 1976, vol. XIII, pp. 424-422. Não
obstante, também traduzimos as passagens que o próprio Nietzsche copiou em seus
cadernos, indicando os fragmentos correspondentes a elas. Além disso,
selecionamos, por nossa própria conta, algumas passagens da obra que também
achamos relevantes. Indicaremos em notas os fragmentos póstumos ou as seções de
O Anticristo que são frutos diretos da leitura das passagens aqui
traduzidas ou que sofreram uma forte influência delas. A numeração entre
colchetes indica o número da página de Ma Religion em que a passagem
traduzida se encontra.
***
TOLSTOÏ, Léon. Ma Religion. Paris: Libraire Fischbacher, 1885.
[p. 9]
Nos Evangelhos, o Sermão
da Montanha se depreendia sempre para mim de todo o resto como qualquer coisa
de excepcional. Também foi ele que eu li mais freqüentemente. Em nenhuma outra
parte Jesus fala com tanta solenidade, em nenhuma outra parte ele oferece
regras morais mais claras, mais acessíveis, que encontram mais eco no coração
de cada um; em nenhuma outra parte ele se dirige a uma multidão tão grande de
gente do povo.
Se existe princípios cristãos claros e precisos é aqui
que eles devem ter sido formulados.
[p. 12]
A passagem que se tornou
para mim a chave de tudo é aquela que está contida nos versículos 38 e 39 de
Mateus, V, “Vós ouviste o que foi dito: Olho por olho e dente por dente: E eu
lhes digo não resistais ao mal que vos é feito”. [3]
Um dia, o sentido exato e simples dessas palavras me
apareceu; eu compreendi que Jesus não disse nada mais nada menos do que aquilo
que ele disse. E logo eu vi não qualquer coisa nova, – eu vi tombar tudo aquilo
que me obscurecia a verdade, e a verdade se mostrou a mim em toda a sua
grandeza.
[p. 20]
Desde minha infância até
minha idade adulta, tenho sido ensinado a venerar aquilo que está em flagrante
contradição com a lei de Jesus: contra-atacar o agressor, vingar-se por meio da
violência pelas ofensas contra minha pessoa minha família e meu povo.
Tudo aquilo que me cerca:
minha segurança e a de minha família, minha propriedade, tudo isso repousa,
pois, sobre uma lei reprovada por Jesus, sobre a lei: “Dente por dente”.
Nada vejo além de que
seja impossível confessar Jesus-Cristo, Deus, cuja doutrina tem por base: “Não
resistais ao malvado”, e, ao mesmo tempo, trabalhar com premeditação pela
organização da propriedade, dos tribunais, do Estado, dos exércitos – de
organizar, em uma palavra, uma existência contrária à vida de Jesus.
[pp. 42-43]
[p. 44]
Os auto-proclamados
crentes crêem que Cristo-Deus, segunda pessoa da Trindade, desceu sobre a terra
para ensinar aos homens, pelo seu exemplo – como se deve viver; eles cumpriram
os atos mais complicados para a consumação dos sacramentos, a edificação dos
templos, o envio de missionários, o estabelecimento dos padres, a administração
das paróquias, o exercício do culto, mas eles esqueceram um pequeno detalhe –
de praticar os mandamentos de Jesus. [6]
Jesus disse simplesmente
e claramente: a lei de resistência ao malvado pela violência da qual vós
fizestes a base de vossa existência é falsa e contrária a natureza do homem, e
ele ofereceu uma outra base, aquela de não resistir ao malvado, regra que,
segundo sua doutrina, é a única que pode livrar os homens do mal.
[p. 45]
Os outros, os incrédulos,
os livres pensadores que comentaram a doutrina de Jesus , os historiadores das religiões, – os Strauss , os Renan, etc. , – completamente imbuídos
dos ensinamentos da Igreja, a qual diz que a doutrina de Jesus dificilmente se concilia com a nossa concepção da vida, declarando com
bastante seriedade, que a doutrina de Jesus é, com efeito, uma
doutrina de visionário, consolação de espíritos fracos, que ela era adequada para ser pregada
nos lugarejos da Galiléia, mas que, para
nós, não é mais do que um doce sonho do “encantador doutor”[7],
como disse Renan. [8]
[pp. 46-47]
Nós sabemos perfeitamente
que a doutrina de Jesus sempre compreendeu, e compreende ao renegar, todos os
erros humanos, todo esse “tohu”[9],
esses ídolos fundidos, que nós quiséramos excetuar do número de erros ao
chamá-los: Igreja, Estado, cultura, ciência, arte, civilização. Mas Jesus falou
precisamente contra tudo isso, sem excetuar não importa qual “tohu”.
Não
somente Jesus, mas todos os profetas hebreus, João Batista, todos os
verdadeiros sábios do mundo falaram precisamente da Igreja, do Estado, da
cultura e da civilização de sua época em lhes chamando de o mal, fonte de
perdição para os homens. [10]
[p. 47]
Suponhamos que um arquiteto dissesse a um proprietário: vossa
casa não vale nada, é preciso reedificá-la. E depois ele acrescenta detalhes
sobre as vigas a serem deslocadas e indica como se deve cortá-las e onde as
fixar. O proprietário se fará de surdo às palavras: “vossa casa não vale nada”
e fará de conta que escuta com respeito o que disse o arquiteto a propósito dos
detalhes relativos à disposição dos quartos. Evidentemente, nesse caso, todos
os conselhos subseqüentes do arquiteto parecerão impraticáveis, quanto aos
proprietários pouco respeitosos, tratarão esses conselhos francamente como
burrice. É exatamente assim que se passa com relação à doutrina de Jesus.
Não se achará melhor comparação,
tenho me feito aquela. Eu me lembro então que Jesus, ensinando sua doutrina,
faz uso da mesma comparação. Ele disse: “Eu destruirei vosso templo e em três
dias eu edificarei um novo”. É por isso mesmo que ele foi posto na cruz, e é
por isso mesmo que agora se crucifica sua doutrina. [11]
[p. 49]
Basta estudar o mecanismo complicado de nossas instituições
baseadas na coerção, para se convencer a que ponto a coerção ou a violência é
contrária à natureza humana. Um juiz não se decidirá a enforcar com suas mãos
aquele que ele condenou segundo um artigo do código. Um empregado não se
decidirá a tirar um aldeão de sua família chorosa para jogá-lo na prisão. Um
general, um soldado que ainda não foi modelado pela disciplina, pelo juramento
e pela guerra, não apenas não matará uma centena de turcos ou de alemães, nem
destruirá suas aldeias, mas não se decidirá mesmo a machucar um só homem. Tudo
isso se faz unicamente graças a esta máquina governamental e social cuja tarefa
consiste em fragmentar a responsabilidade dos malefícios que se cometem, de
modo que ninguém sinta a que ponto seus atos são contrários a sua natureza. Uns
redigem as leis; outros as aplicam; os terceiros endurecem as pessoas pela
disciplina, quer dizer, pela obediência irrefletida e passiva; os quartos,
estas mesmas pessoas já endurecidas, fazem-se de instrumentos para toda espécie
de coerção, e matam seus semelhantes sem saber nem com que fim nem com que
motivo. Mas é suficiente que um homem se livre por um instante dessa rede
emaranhada para compreender o que é contrário a sua natureza.
Abstenhamo-nos de afirmar que a
violência organizada, da qual nós fazemos uso em nosso proveito, é a verdade
divina imutável e então se verá claramente o que convém à natureza humana: a
violência, ou a doutrina de Jesus. [12]
[p. 51]
Deus desceu sobre a
terra, o Filho de Deus, – uma pessoa da Trindade, – encarnou para corrigir o
pecado de Adão; este Deus (que nós nos acostumamos a crer) deve ter dito
qualquer coisa de misterioso e de místico, qualquer coisa difícil de
compreender, que não é possível compreender sem a ajuda da fé e da graça, e a
todo instante as palavras de Deus se encontrariam assim tão simples, tão claras
e tão razoáveis? [13]
[p. 58]
Segundo Lucas (XVI, 15 e
ss), Jesus disse aos fariseus que atribuíam a justiça à sua lei escrita:
“Quanto a vós, vós têm grande cuidado de parecer justos diante dos homens, mas
Deus conhece o fundo de vossos corações, pois o que é grande aos olhos dos
homens é uma abominação aos olhos de Deus”. [14]
[p. 73]
Quando eu compreendi a lei de Jesus, como lei de Jesus, e
não como lei de Jesus e Moisés; quando eu compreendi o mandamento dessa lei que
revoga absolutamente a lei de Moisés, todos os Evangelhos, antes tão obscuros, tão
difusos, tão contraditórios para mim, se fundiram em um todo homogêneo, e desse
conjunto se destaca a substância de toda a doutrina, formulada em termos
simples, claros e acessíveis a qualquer um (Mateus V, 21-48 e especialmente
versículo 38), mais dos quais eu não havia compreendido nada até então.
[p. 110]
O reino de Deus sobre a
terra é a paz de todos os homens entre si. Foi assim que todos os profetas
hebreus conceberam o reino de Deus. A paz entre os homens é o maior bem sobre a
terra e que está ao alcance de todos. [15]
[pp. 111-112]
Que os homens se abstenham de praticar um desses
mandamentos, – a paz será violada. Que os homens pratiquem todos esses
mandamentos, e o reino da paz se estabelecerá na terra. Esses mandamentos
excluem o mal da vida dos homens.
A
prática destes cinco mandamentos confere à vida humana tudo aquilo que procura
e deseja todo o coração humano. Todos os homens tornar-se-ão irmãos, e cada um
estará em paz com os outros, desfrutando de todos os bens da terra até o termo
que lhes é estabelecido por Deus... o ano favorável do “Senhor”... (Lucas, IV,
18-19-21) Isaías, 61, 1-2. [16]
[pp. 117-118]
Somente uma concepção
quimérica que toma aquilo que não é pela realidade, e toma a realidade por
qualquer coisa que não é, pode levar os homens a essa singular negação da
possibilidade de praticar o que, segundo sua própria confissão, lhes
proporciona o verdadeiro bem.
A
concepção quimérica que reduziu os homens a esta condição se chama religião
cristã dogmática, aquela que é ensinada desde a infância a todos os que
professam o cristianismo da Igreja, de acordo com os diferentes catecismos
ortodoxos, católicos e protestantes.
Essa religião,
de acordo com a definição dos fiéis, consiste em aceitar como real aquilo que
não é (estas são as palavras de Paulo, que se repetem em todas as teologias e
catecismos como a melhor definição da fé). Pois bem, é precisamente a fé na
realidade daquilo que é quimérico o que conduziu os homens a essa singular
afirmação: a doutrina de Jesus é excelente para os homens, mas ela não vale
nada para regular sua existência.
Eis o
resumo mais fiel daquilo que esta religião ensina:
Um
Deus pessoal que é desde toda
eternidade – um em três pessoas – se vê um dia a criar todo um mundo de
espíritos. Esse Deus da bondade cria esse mundo de espíritos para o bem deles,
mas ocorre que um desses espíritos se torna mau espontaneamente. Passa-se muito
tempo e Deus cria um outro mundo material; ele cria também o homem, igualmente
pelo seu bem. Deus cria o homem bem-aventurado, imortal e sem pecado. A
felicidade do homem consistia em gozar da vida sem trabalho; sua imortalidade
consistia em que esse gênero de vida deveria durar eternamente, sua inocência
consistia em não ter ele a noção do mal.
Este
homem foi seduzido no paraíso por aqueles espíritos da primeira criação que se
tornaram espontaneamente maus. Daí data a queda do homem, que engendra homens
decaídos como ele, e depois desse tempo os homens conheceram o trabalho, as
doenças, o sofrimento, a morte, a luta física e moral; quer dizer que o homem
fantástico (antes da queda) decifra a realidade, tal qual nós a conhecemos, da
qual nós não temos nenhum direito, nenhuma razão de a representarmos
diferentemente.
O
estado do homem que trabalha, que sofre, que escolhe o bem e repousa no mal,
que morre, – este estado que é a realidade e fora da qual nós nada podemos
conceber, não é, segundo a doutrina desta religião, o estado normal do homem,
mas um estado que não lhe é natural, um estado temporário. [17]
[pp. 118-121]
Embora este estado, segundo essa doutrina, dure, por toda a
humanidade, a datar da expulsão de Adão do paraíso, isto é, do começo do mundo
até o nascimento de Jesus, e dure depois de Jesus exatamente nas mesmas
condições, os fiéis devem se persuadir que este é um estado anormal e
temporário. Segundo essa doutrina, o Filho de Deus – Deus mesmo, a segunda
pessoa da Trindade, foi enviado por Deus sobre a terra sob o aspecto de um
homem para tirar o homem desse estado temporário e anormal, para livrá-lo de
todas as maldições lançadas por esse mesmo Deus devido ao pecado de Adão, e
reintegrá-lo ao seu estado anterior, normal, de felicidade, ou seja, de
imortalidade, de inocência e de ociosidade. – A segunda pessoa da Trindade –
Jesus Cristo, segundo essa doutrina, por aquilo mesmo que os homens lhe condenaram
a morte, resgatou o pecado de Adão e pôs fim a esse estado anormal que durava
desde o começo do mundo. E, desde então, o homem que têm fé em Jesus volta a
ser aquilo que era o primeiro homem no paraíso, isto é, imortal, inocente e
ocioso.
A
doutrina não se estende demais sobre a parte prática da redenção em virtude da
qual, após Jesus, a terra recomeçou, para os crentes, a ser fértil sem o
trabalho em todo lugar, as doenças cessaram e as crianças começaram a nascer de
suas mães, sem dor, porque é difícil assegurar àqueles que são extenuados pelo
trabalho excessivo e assaltados pelo sofrimento, por mais crentes que eles
sejam, que o trabalho é leve e o sofrimento inofensivo. Mas a parte da doutrina
que proclama a abolição da morte e do pecado é afirmada com uma força
redobrada.
Assim
se afirma que os mortos continuam vivos. E como os mortos não podem testemunhar
que eles estão mortos nem ratificar que eles estão vivos, bem como uma pedra
não pode afirmar que ela pode ou não pode falar, esta recusa de denegação é
admitida como prova e se afirma que os homens mortos não estão mortos. Assim se
afirma ainda com mais solenidade e segurança que, depois da vinda de Jesus, o
homem que tem fé Nele é livre de pecado, ou seja, que depois da vinda de Jesus,
o homem não tem mais a necessidade de se esclarecer na vida pela razão e de
escolher o que é melhor para ele. Ele só tem que crer que Jesus pagou pelos
seus pecados e eis que ele se torna infalível, quer dizer, perfeito.
O que,
segundo essa doutrina, chama-se verdadeira vida é a vida pessoal,
bem-aventurada, sem pecado e eterna, ou seja, uma vida que ninguém nunca
conheceu e que não existe. Mas, a vida que é, a única que nós conhecemos, em
que nós vivemos, e que toda a humanidade viveu e vive, é, segundo essa
doutrina, uma vida decaída, má, uma aparência somente daquela vida bem-aventurada
que nos é devida.
A vida
tal como é sobre a terra com todas as suas alegrias, seus esplendores, com a
luta da razão contra as trevas – a vida de todos os homens que viveram antes de
mim, toda a minha vida mesma, com minhas lutas interiores e os triunfos de
minha razão, tudo isso não é a verdadeira vida, é a vida decaída, má sem
retorno; mas a verdadeira vida, sem pecado, está só na fé, quer dizer, na
imaginação, quer dizer, na demência.[18]
[pp. 122-123]
Mas ao aprofundar o
princípio de sua negação eu pude me convencer que os céticos, assim como os
crentes, fazem da vida a mesma concepção falsa; aos seus olhos, ela não é
aquilo que ela é, mas aquilo que eles imaginam que ela deveria ser, e essa
concepção repousa exatamente sobre o mesmo fundamento que o dos crentes.
É
verdade que os céticos, que pretendem não crer em nada, não crêem nem em Deus,
nem em Jesus Cristo, nem em Adão; mas eles crêem na tese fundamental, que é a base
de sua falsa concepção, – no direito do homem a uma vida de beatitude, – ainda
bem mais firmemente que os teólogos.
A
ciência e a filosofia se ofereceram de forma bela como as árbitras e as guias
do espírito humano, elas não são mais do que suas servas. A religião lhes fornece
uma concepção de vida tomada totalmente de empréstimo e a ciência não faz mais
do que trabalhar no sulco traçado pela religião. A religião revela o sentido da
vida e a ciência não faz mais do que aplicá-lo às diferentes circunstâncias que
se produzem. Isso porque, quando a religião falsificou o sentido da vida
humana, a ciência elevada sobre esta base não pôde mais do que pôr em obra
essas mesmas concepções fantásticas. [19]
[pp. 123-125]
Nossa religião, nossa
ciência, nossa opinião pública, fazem coro para nos dizer que a vida a qual
estamos presos é malvada, e ao mesmo tempo elas afirmam que a doutrina que nos
ensina como é possível tornar-se melhor, melhorando assim a sua vida é uma
doutrina impraticável.
A
doutrina de Jesus que nos fornece um meio razoável de melhorar nossa vida por
nossas próprias forças é impraticável, porque Adão decaiu e o mundo mergulhou
no mal – diz a religião.
Essa
doutrina é impraticável porque a vida humana evolui segundo certas leis
independentes da vontade humana, diz nossa filosofia. A filosofia e a ciência
dizem, em outros termos, exatamente aquilo que diz a religião por meio de seu
dogma do pecado original e da redenção.
O
espiritualismo, com seus sábios aderentes, é a melhor prova que o ponto de
vista filosófico e científico não é independente, mas baseado sobre a doutrina
religiosa da beatitude eterna que seria a partilha natural do homem. [20]
[p. 125]
Crentes e céticos se
preocupam também pouco tanto uns como os outros com a questão de saber como
viver, como fazer uso dessa razão da qual somos dotados; eles se perguntam por
que nossa vida terrestre não é como aquela que nós nos imaginamos, e quando ela
se tornará como nós a desejamos. [21]
[pp. 144-145]
A verdadeira vida é
aquela que acrescenta algo ao bem acumulado pelas gerações passadas, que
aumenta essa herança no presente e a lega as gerações futuras.
Para
estar associado a essa vida, o homem deverá de boa vontade renunciar a sua
vontade pessoal para observar a vontade do Pai, que deu a vida aos Filhos (do
homem).[22]
Vós só vivestes a vida
pessoal, mas da vida do filho (do homem), é por ela que vós tereis vida eterna.
Em
todo o Evangelho, Jesus não ensina mais do que essa vida eterna. E por mais
estranho que pareça, Jesus, que ressuscitou em pessoa e que prometeu a
ressurreição geral, – Jesus não apenas jamais disse nada para afirmar a
ressurreição individual e a imortalidade individual além da morte, mas ao
contrário cada vez que ele encontrava essa superstição, introduzida nessa época
no Talmude e de que não há traços entre os profetas hebreus, – ele não deixa
jamais de negá-la.
[p. 149]
A idéia de uma vida
futura eterna não nos vem nem da doutrina judaica nem da de Jesus. Ela nos vem
de outra parte. Por mais estranho que isso pareça, não se pode deixar de dizer
que a crença em uma vida futura é uma concepção muito baixa e muito grosseira,
fundada sob uma idéia confusa da semelhança entre o sono e a morte, idéia comum
a todos os povos selvagens.[23]
[p.155]
Toda a doutrina de Jesus
consiste em ensinar a renúncia à vida pessoal, que é uma quimera, e a fazer
regressar essa vida pessoal na vida comum de toda a humanidade, na vida do
Filho do homem. Porém, a doutrina da imortalidade individual da alma, não
apenas não pode renunciar a vida pessoal, mas, pelo contrário, afirma a
individualidade a todo custo. [24]
Segundo
as idéias dos judeus, dos chineses, dos hindus, e de todos os homens que não
crêem no dogma da queda e da redenção, a vida é a vida tal como ela é. [25]
[p. 169]
A doutrina está na
renúncia à vida pessoal e vós exigis a glória pessoal, – uma recompensa
pessoal.
É somente na vida mundana
que os grandes deste mundo aproveitam e usufruem da glória e do poder pessoal;
mas vós, meus discípulos, vós deveis saber que o verdadeiro sentido da vida
humana não se acha na felicidade pessoal, mas no fato de servir a todos e de se
humilhar diante de todos... [26]
[pp. 170-171]
Em resposta a exigência
de seus discípulos, que lhe revelavam a sua inaptidão de compreender sua
doutrina, Jesus não ordena ter fé, quer dizer, modificar a idéia que eles fazem
dos bens e dos males que resultam da doutrina deles (Ele diz que isso é impossível),
mas Ele lhes explica o sentido da vida que é a base da fé, isto é, Ele lhes
ensina o verdadeiro discernimento entre o bem e o mal, do importante e do
secundário.
Jesus
explica a Pedro que ele não compreende a doutrina e que isto é a causa de sua falta
de fé. Jesus disse: a remuneração proporcional ao trabalho só tem importância
do ponto de vista de uma vida pessoal. A fé na recompensa pelo trabalho em
proporção ao trabalho decorre da doutrina da vida pessoal.
Essa
fé se baseia sobre a presunção de eu não sei que direitos que nós imaginamos
ter; mas o homem não tem direito a nada, não tem mais do que obrigações pelo
bem que recebeu, eis porque ele não pode contar com ninguém. Então, mesmo que
ele desse toda a sua vida, não restituiria tudo aquilo que recebeu, eis porque
o Senhor não pode ser injusto com ele. Mas se o homem faz valer seus direitos
sobre sua vida, se ele conta com o Princípio de tudo, do qual ele recebeu a
vida, ele só provará uma coisa, – que ele não compreende o sentido da vida. Os homens,
após receberem um benefício, exigem ainda outra coisa. Os trabalhadores da
parábola haviam se tornado ociosos, infelizes, – não mais viviam. Um senhor
lhes pega e lhes dá a felicidade suprema da vida, – o trabalho.
Eles
aceitam o benefício do senhor e depois ficam descontentes, porque eles não estavam
nitidamente conscientes da sua situação. Eles apenas vieram a trabalhar com sua
falsa doutrina do direito ao trabalho e à vida, por conseqüência, com a idéia
da remuneração que lhes é dada pelo trabalho. Eles não compreenderam que aquele
trabalho foi o bem supremo que eles receberam grátis e pelo qual eles deveriam
se esforçar em se mostrar reconhecidos, e não exigir um pagamento. [27]
[p. 172]
A fé não pode provir da
confiança em suas palavras; a fé provém unicamente da consciência de nossa
situação. A fé é baseada unicamente sobre a consciência racional daquilo que se
tem de melhor a fazer em uma dada situação. Ele demonstrou que não se pode
despertar esta fé nos outros pela promessa de recompensa ou pela ameaça de
punições; que está fé não será mais do que uma confiança muito fraca, que ruirá
à primeira prova, mas quanto à fé que remove montanhas – essa que não há nada
que não saiba ultrapassar, se funda sobre a consciência de nossa perda inevitável
caso nós não aproveitemos o aceno que nos é ofertado.
Para
ter fé, não se deve contar com alguma promessa de recompensa. Deve-se
compreender que o único meio de escapar ao inevitável naufrágio da vida, é a
vida conforme a vontade do Mestre. [28]
[p. 175]
Também a questão: Como se
faz para crer? é uma questão que testemunha que não se compreendeu a doutrina
de Jesus Cristo. [29]
[p. 220]
E eu adquiri a convicção
que a doutrina da Igreja, embora tenha levado o nome de “cristianismo”, parece
singularmente com as trevas contra as quais Jesus lutou e recomendou seus
discípulos a lutar.
[pp. 226-227]
Tudo aquilo que constitui
a vida atualmente, isto é, a atividade das sociedades humanas no sentido do
progresso em direção ao bem: o socialismo, o comunismo, as novas teorias
político-econômicas, o utilitarismo, a liberdade e a igualdade dos homens, das
classes sociais e das mulheres, todos os princípios morais da humanidade, a
santidade do trabalho, da razão, da ciência, da arte, tudo aquilo que
impulsiona o mundo e parece hostil à Igreja, tudo isso não é outra coisa que
resquícios da mesma doutrina produzida pela Igreja, mas que ela se esforça por
esconder cuidadosamente.
[p. 236]
O antagonismo entre as
explicações da Igreja, passando pela fé, e a verdadeira fé de nossa geração,
que consiste em obedecer às leis sociais e àquelas do Estado, é a entrada em
uma fase aguda, e a maioridade das pessoas civilizadas não é mais do que
ajustar sua vida à fé no sargento da cidade e no quartel.
Esta
situação seria pavorosa caso ela chegasse completamente a tal ponto; mas
felizmente há pessoas, as melhores de nossa época, que não se contentam com
essa religião, mas que possuem uma fé totalmente diferente relativamente àquela
que deve ser a vida dos homens.
Esses
homens são considerados como os maiores malfeitores, os mais perigosos, e
principalmente os mais incrédulos de todos os seres: e, no entanto, esses são
os únicos homens de nosso tempo que crêem na doutrina evangélica, se não em seu
conjunto, ao menos em parte.
Os
perseguidos e caluniados, esses são os únicos, que não se submetem sem
protestar às primeiras ordens que chegam; por conseqüência, esses são os únicos
em nossa época, que vivem uma vida racional, não uma vida animal; esses são os
únicos que possuem fé. [30]
[pp. 243-244]
A doutrina de Jesus não
pode contrariar de maneira alguma os homens de nosso século sobre a maneira de
considerar o mundo; ela está de acordo desde logo com sua metafísica, mas ela
lhes dá aquilo que eles não têm, aquilo que lhes é indispensável e aquilo que
eles procuram: ela lhes dá o caminho da vida, não um caminho desconhecido, mas
um caminho explorado e familiar a todos. [31]
Creia na ressurreição, no
Paraíso, no Inferno, no papa, na Igreja, nos sacramentos, na redenção; reza
conforme as prescrições de vossa religião, faça sua devoção, cante os hinos,
tudo isso não vos impede de praticar esses cinco mandamentos que vos foram
revelados por Jesus para o vosso bem: Não
vos tornai coléricos; Não cometei adultério; Não prestai juramento; Não vos
defendei pela violência; não fazei guerra.
Pode
acontecer de vós falhardes com uma dessa regras; vós cederdes talvez ao
treinamento, e vós violardes uma delas como
vós violais agora as regras de vossa religião,
os artigos do código civil ou os do código mundano. Da mesma forma, vós falhareis
talvez, num momento de treinamento, aos mandamentos de Jesus. Mas, nos momentos de
calma, não fazei o que fazeis agora, não vos organizai em uma existência que torna
difícil a tarefa de não vos tornardes
coléricos, de não cometerdes adultério, de não prestardes juramento, de não vos
defenderdes pela violência, de não fazerdes guerra; organize-vos em uma
existência que torne difícil fazer tudo aquilo. [32]
Vós não tendes atualmente
nenhuma regra, a não ser aquelas que são redigidas por homens que vós não
estimais e postas em vigor pela polícia. A doutrina de Jesus lhes dá essas
regras, que, seguramente, estão de acordo com vossa lei, porque vossa lei do
“altruísmo” ou da vontade única não é outra coisa que uma má paráfrase dessa mesma
doutrina de Jesus. [33]
[1] Cf. as cartas a Heinrich Köselitz de 13 de fevereiro
de 1888 e de 26 de fevereiro de 1888. Ver também: Souladié, Yannick. “Cristo e Anticristo: figuras da inversão dos
valores em Nietzsche”. Tradução Ernani Chaves e Allan Davy Santos Sena. In: Estudos Nietzsche. Curitiba, v. 2, n. 2
(no prelo).
Montinari, Mazzino. La volonté de
puissance n’existe pas. Texte
établi et postfacé par Paolo d’Iorio, traduit de l’italien et précédé d’une note
par Patricia Farazzi &
Michel Valensi. Paris: Editions de
l’éclat, 1996. Colli, Giorgio. Escritos
sobre Nietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2000. Morillas, Antonio. “Ecce homo (Turín 1888 –
Leipzig 1908). Historia de una ocultación”. Disponível em: <http://www.agonfilosofia.es/>.
[3] Cf. Fragmento póstumo 11 [246] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 29.
[4] Cf. Fragmento póstumo 11 [247] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[5] Cf. Fragmento póstumo 11 [248] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[6] Cf. Fragmento póstumo 11 [243] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[7] Cf. Renan, Ernest. “Vie de Jésus” ; in: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. “O encantador doutor que perdoava a todos
desde que o amassem, não poderia encontrar muito eco nesse santuário de
disputas vãs e de sacrifícios vis [ou seja, o Templo]” (Chap 13, p. 154).
[8] Cf. Fragmento póstumo 11 [242] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[9] Cf. I Samuel, 12: 21; expressão cuja tradução varia:
“coisas vãs”, “outros deuses”, “falsos deuses”, na Bíblia de Jerusalém
recorreu-se a “ídolos de nada”, o que se adéqua bem ao contexto da passagem de
Tolstói.
[10] Cf. Fragmento póstumo 11 [249] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[11] Cf. Fragmento póstumo 11 [250] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[12] Cf. Fragmento póstumo 11 [252] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[13] Cf. Fragmento póstumo 11 [253] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[14] Cf. Fragmento póstumo 11 [254] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[15] Cf. Fragmento póstumo 11 [268] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[16] Cf. Fragmento póstumo 11 [269] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 35.
[17] Cf. Fragmento póstumo 11 [262] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[18] Cf. Fragmento póstumo 11 [263] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[19] Cf. Fragmento póstumo 11 [264] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[20] Cf. Fragmento póstumo 11 [265] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[21] Cf. Fragmento póstumo 11 [266] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[22] AC § 43.
[23] Cf. Fragmento póstumo 11 [255] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[24] Cf. Fragmento póstumo 11 [256] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[25] Cf. Fragmento póstumo 11 [255] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[26] Cf. Fragmento póstumo 11 [270] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[27] Cf. Fragmento póstumo 11 [270] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[28] Cf. Fragmento póstumo 11 [271] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[29] Cf. Fragmento póstumo 11 [260] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[30] Cf. Fragmento póstumo 11 [277] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[31] Cf. Fragmento póstumo 11 [277] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[32] Cf. Fragmento póstumo 11 [273] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 33.
[33] Cf. Fragmento póstumo 11 [274] de novembro de 1887 -
março de 1888.
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