Lev Tolstói em sua propriedade em Iásnaia Poliana, 1908 |
Minha Religião, por Lev Tolstói (trechos)
Contribuição para uma genealogia de O Anticristo
Apresentação,
tradução e notas de Allan Davy Santos Sena
Doutorando em Filosofia
pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp
Bolsista CNPq
(allandavy@hotmail.com)
Apresentação
O
ensaio Ma Religion, de Tolstói, não
foi publicado na Rússia por ter sido censurado pelo Estado, sendo publicado
diretamente na França em uma tradução corrigida e aprovada pelo autor. Por
conta disso, o livro não consta em praticamente nenhuma das edições de obras
completas do romancista, que geralmente adotam como critério que o texto tenha
sido publicado em língua russa, ainda que algumas cópias do manuscrito original
em russo tenham sido feitas e circulado entre os seguidores de Tolstói. Nietzsche
leu esse ensaio em sua versão francesa em Nice, nos primeiros meses de 1888, imediatamente após os malfadados
esforços empreendidos com vistas à produção de sua planejada obra Vontade de poder: ensaio de uma
transvaloração de todos os valores, e que haviam resultado finalmente no
abandono deste projeto por parte do filósofo. [1]
Nos fragmentos póstumos 11 [236] a 11 [282] de novembro de 1887 - março de 1888, o filósofo
resume, toma notas, copia e traduz diversas passagens de Ma Religion, e, em alguns momentos, faz esboços e tentativas de
interpretação das idéias expostas na obra. Esse material serviu como base para
diversos elementos da crítica ao cristianismo feita em O Anticristo. Vários desses apontamentos (12 no total) foram
editados pela irmã do filósofo, Elizabeth Föster Nietzsche, como se fossem
autênticos aforismos do filósofo, e
publicados no infame embuste produzido por ela, ou seja, a pretensa “Vontade de poder”, por ela organizada.
Diversos intérpretes que alegam que Nietzsche se contradiz em sua crítica ao
cristianismo tiveram a “Vontade de poder” como base, e, portanto, assumiram que
muitas das posições defendidas por Tolstói, um cristão “herético”, eram as de
Nietzsche, como é o caso mais notável de Karl Jaspers e Heidegger. Contudo, é
somente em outros fragmentos póstumos e, acima de tudo, em O Anticristo, que Nietzsche fará uma apropriação das teses
defendidas por Tolstói em Ma Religion,
conferindo às mesmas, entretanto, nesse movimento, um significado novo,
original e próprio ao seu pensamento.
Entre essas notas, uma das únicas que não se limitam a reproduzir as idéias de
Tolstói é o fragmento 11 [251] de novembro de 1887 - março de 1888, redigido
por Nietzsche em primeira pessoa, no qual ele afirma jamais ter sido cristão uma só hora de sua vida, tal fragmento foi
convenientemente suprimido da segunda edição da “Vontade de poder”, a mesma utilizada por Jaspers, Heidegger e
vários outros intérpretes.
O ensaio
Ma Religion pertence ao período do chamado “segundo Tolstói” [2],
isto é, o Tolstói posterior à sua famosa conversão ocorrida entre os seus setenta e oitenta anos, a partir da qual ele aderiu a um cristianismo de caráter anárquico e radical , cuja personificação mais patente ele encontrava entre os camponeses russos. Nessa fase, Tolstói renegou todas
as suas antigas convicções a respeito da vida e da natureza da obra de arte , renegando livros que o tornaram mundialmente famoso, como Guerra e Paz (1868) e Ana Karenina
(1875), como vãs futilidades. O cristianismo professado por Tolstói tem como fundamento
absoluto a crença de que a resposta pela não-violência
constitui a essência dos ensinamentos de Cristo e que, por conseguinte, toda forma institucional, eclesiástica do cristianismo é necessariamente contrária a esses ensinamentos, já que eleva seus alicerces por meio
de procedimentos inevitavelmente coercitivos.
As passagens
de Ma Religion aqui traduzidas foram
escolhidas, em sua maior parte, com base na seleção presente nas notas do
volume dedicado aos fragmentos póstumos de Nietzsche do outono de 1887 a março
de 1888 publicado pela Gallimard: Nietzsche, Friedrich. “Fragments posthumes: Automme 1887 - Mars 1888”. In: Œuvres
philosophiques complètes. Textes et variantes établis par G. Colli et M. Montinari, traduits de
l’allemand par Pierre Klossowski et
Henri-Alexis Baatsch. Paris: Galimard, 1976, vol. XIII, pp. 424-422. Não
obstante, também traduzimos as passagens que o próprio Nietzsche copiou em seus
cadernos, indicando os fragmentos correspondentes a elas. Além disso,
selecionamos, por nossa própria conta, algumas passagens da obra que também
achamos relevantes. Indicaremos em notas os fragmentos póstumos ou as seções de
O Anticristo que são frutos diretos da leitura das passagens aqui
traduzidas ou que sofreram uma forte influência delas. A numeração entre
colchetes indica o número da página de Ma Religion em que a passagem
traduzida se encontra.
***
TOLSTOÏ, Léon. Ma Religion. Paris: Libraire Fischbacher, 1885.
[p. 9]
Nos Evangelhos, o Sermão
da Montanha se depreendia sempre para mim de todo o resto como qualquer coisa
de excepcional. Também foi ele que eu li mais freqüentemente. Em nenhuma outra
parte Jesus fala com tanta solenidade, em nenhuma outra parte ele oferece
regras morais mais claras, mais acessíveis, que encontram mais eco no coração
de cada um; em nenhuma outra parte ele se dirige a uma multidão tão grande de
gente do povo.
Se existe princípios cristãos claros e precisos é aqui
que eles devem ter sido formulados.
[p. 12]
A passagem que se tornou
para mim a chave de tudo é aquela que está contida nos versículos 38 e 39 de
Mateus, V, “Vós ouviste o que foi dito: Olho por olho e dente por dente: E eu
lhes digo não resistais ao mal que vos é feito”. [3]
Um dia, o sentido exato e simples dessas palavras me
apareceu; eu compreendi que Jesus não disse nada mais nada menos do que aquilo
que ele disse. E logo eu vi não qualquer coisa nova, – eu vi tombar tudo aquilo
que me obscurecia a verdade, e a verdade se mostrou a mim em toda a sua
grandeza.
[p. 20]
Desde minha infância até
minha idade adulta, tenho sido ensinado a venerar aquilo que está em flagrante
contradição com a lei de Jesus: contra-atacar o agressor, vingar-se por meio da
violência pelas ofensas contra minha pessoa minha família e meu povo.
Tudo aquilo que me cerca:
minha segurança e a de minha família, minha propriedade, tudo isso repousa,
pois, sobre uma lei reprovada por Jesus, sobre a lei: “Dente por dente”.
Nada vejo além de que
seja impossível confessar Jesus-Cristo, Deus, cuja doutrina tem por base: “Não
resistais ao malvado”, e, ao mesmo tempo, trabalhar com premeditação pela
organização da propriedade, dos tribunais, do Estado, dos exércitos – de
organizar, em uma palavra, uma existência contrária à vida de Jesus.
[pp. 42-43]
[p. 44]
Os auto-proclamados
crentes crêem que Cristo-Deus, segunda pessoa da Trindade, desceu sobre a terra
para ensinar aos homens, pelo seu exemplo – como se deve viver; eles cumpriram
os atos mais complicados para a consumação dos sacramentos, a edificação dos
templos, o envio de missionários, o estabelecimento dos padres, a administração
das paróquias, o exercício do culto, mas eles esqueceram um pequeno detalhe –
de praticar os mandamentos de Jesus. [6]
Jesus disse simplesmente
e claramente: a lei de resistência ao malvado pela violência da qual vós
fizestes a base de vossa existência é falsa e contrária a natureza do homem, e
ele ofereceu uma outra base, aquela de não resistir ao malvado, regra que,
segundo sua doutrina, é a única que pode livrar os homens do mal.
[p. 45]
Os outros, os incrédulos,
os livres pensadores que comentaram a doutrina de Jesus , os historiadores das religiões, – os Strauss , os Renan, etc. , – completamente imbuídos
dos ensinamentos da Igreja, a qual diz que a doutrina de Jesus dificilmente se concilia com a nossa concepção da vida, declarando com
bastante seriedade, que a doutrina de Jesus é, com efeito, uma
doutrina de visionário, consolação de espíritos fracos, que ela era adequada para ser pregada
nos lugarejos da Galiléia, mas que, para
nós, não é mais do que um doce sonho do “encantador doutor”[7],
como disse Renan. [8]
[pp. 46-47]
Nós sabemos perfeitamente
que a doutrina de Jesus sempre compreendeu, e compreende ao renegar, todos os
erros humanos, todo esse “tohu”[9],
esses ídolos fundidos, que nós quiséramos excetuar do número de erros ao
chamá-los: Igreja, Estado, cultura, ciência, arte, civilização. Mas Jesus falou
precisamente contra tudo isso, sem excetuar não importa qual “tohu”.
Não
somente Jesus, mas todos os profetas hebreus, João Batista, todos os
verdadeiros sábios do mundo falaram precisamente da Igreja, do Estado, da
cultura e da civilização de sua época em lhes chamando de o mal, fonte de
perdição para os homens. [10]
[p. 47]
Suponhamos que um arquiteto dissesse a um proprietário: vossa
casa não vale nada, é preciso reedificá-la. E depois ele acrescenta detalhes
sobre as vigas a serem deslocadas e indica como se deve cortá-las e onde as
fixar. O proprietário se fará de surdo às palavras: “vossa casa não vale nada”
e fará de conta que escuta com respeito o que disse o arquiteto a propósito dos
detalhes relativos à disposição dos quartos. Evidentemente, nesse caso, todos
os conselhos subseqüentes do arquiteto parecerão impraticáveis, quanto aos
proprietários pouco respeitosos, tratarão esses conselhos francamente como
burrice. É exatamente assim que se passa com relação à doutrina de Jesus.
Não se achará melhor comparação,
tenho me feito aquela. Eu me lembro então que Jesus, ensinando sua doutrina,
faz uso da mesma comparação. Ele disse: “Eu destruirei vosso templo e em três
dias eu edificarei um novo”. É por isso mesmo que ele foi posto na cruz, e é
por isso mesmo que agora se crucifica sua doutrina. [11]
[p. 49]
Basta estudar o mecanismo complicado de nossas instituições
baseadas na coerção, para se convencer a que ponto a coerção ou a violência é
contrária à natureza humana. Um juiz não se decidirá a enforcar com suas mãos
aquele que ele condenou segundo um artigo do código. Um empregado não se
decidirá a tirar um aldeão de sua família chorosa para jogá-lo na prisão. Um
general, um soldado que ainda não foi modelado pela disciplina, pelo juramento
e pela guerra, não apenas não matará uma centena de turcos ou de alemães, nem
destruirá suas aldeias, mas não se decidirá mesmo a machucar um só homem. Tudo
isso se faz unicamente graças a esta máquina governamental e social cuja tarefa
consiste em fragmentar a responsabilidade dos malefícios que se cometem, de
modo que ninguém sinta a que ponto seus atos são contrários a sua natureza. Uns
redigem as leis; outros as aplicam; os terceiros endurecem as pessoas pela
disciplina, quer dizer, pela obediência irrefletida e passiva; os quartos,
estas mesmas pessoas já endurecidas, fazem-se de instrumentos para toda espécie
de coerção, e matam seus semelhantes sem saber nem com que fim nem com que
motivo. Mas é suficiente que um homem se livre por um instante dessa rede
emaranhada para compreender o que é contrário a sua natureza.
Abstenhamo-nos de afirmar que a
violência organizada, da qual nós fazemos uso em nosso proveito, é a verdade
divina imutável e então se verá claramente o que convém à natureza humana: a
violência, ou a doutrina de Jesus. [12]
[p. 51]
Deus desceu sobre a
terra, o Filho de Deus, – uma pessoa da Trindade, – encarnou para corrigir o
pecado de Adão; este Deus (que nós nos acostumamos a crer) deve ter dito
qualquer coisa de misterioso e de místico, qualquer coisa difícil de
compreender, que não é possível compreender sem a ajuda da fé e da graça, e a
todo instante as palavras de Deus se encontrariam assim tão simples, tão claras
e tão razoáveis? [13]
[p. 58]
Segundo Lucas (XVI, 15 e
ss), Jesus disse aos fariseus que atribuíam a justiça à sua lei escrita:
“Quanto a vós, vós têm grande cuidado de parecer justos diante dos homens, mas
Deus conhece o fundo de vossos corações, pois o que é grande aos olhos dos
homens é uma abominação aos olhos de Deus”. [14]
[p. 73]
Quando eu compreendi a lei de Jesus, como lei de Jesus, e
não como lei de Jesus e Moisés; quando eu compreendi o mandamento dessa lei que
revoga absolutamente a lei de Moisés, todos os Evangelhos, antes tão obscuros, tão
difusos, tão contraditórios para mim, se fundiram em um todo homogêneo, e desse
conjunto se destaca a substância de toda a doutrina, formulada em termos
simples, claros e acessíveis a qualquer um (Mateus V, 21-48 e especialmente
versículo 38), mais dos quais eu não havia compreendido nada até então.
[p. 110]
O reino de Deus sobre a
terra é a paz de todos os homens entre si. Foi assim que todos os profetas
hebreus conceberam o reino de Deus. A paz entre os homens é o maior bem sobre a
terra e que está ao alcance de todos. [15]
[pp. 111-112]
Que os homens se abstenham de praticar um desses
mandamentos, – a paz será violada. Que os homens pratiquem todos esses
mandamentos, e o reino da paz se estabelecerá na terra. Esses mandamentos
excluem o mal da vida dos homens.
A
prática destes cinco mandamentos confere à vida humana tudo aquilo que procura
e deseja todo o coração humano. Todos os homens tornar-se-ão irmãos, e cada um
estará em paz com os outros, desfrutando de todos os bens da terra até o termo
que lhes é estabelecido por Deus... o ano favorável do “Senhor”... (Lucas, IV,
18-19-21) Isaías, 61, 1-2. [16]
[pp. 117-118]
Somente uma concepção
quimérica que toma aquilo que não é pela realidade, e toma a realidade por
qualquer coisa que não é, pode levar os homens a essa singular negação da
possibilidade de praticar o que, segundo sua própria confissão, lhes
proporciona o verdadeiro bem.
A
concepção quimérica que reduziu os homens a esta condição se chama religião
cristã dogmática, aquela que é ensinada desde a infância a todos os que
professam o cristianismo da Igreja, de acordo com os diferentes catecismos
ortodoxos, católicos e protestantes.
Essa religião,
de acordo com a definição dos fiéis, consiste em aceitar como real aquilo que
não é (estas são as palavras de Paulo, que se repetem em todas as teologias e
catecismos como a melhor definição da fé). Pois bem, é precisamente a fé na
realidade daquilo que é quimérico o que conduziu os homens a essa singular
afirmação: a doutrina de Jesus é excelente para os homens, mas ela não vale
nada para regular sua existência.
Eis o
resumo mais fiel daquilo que esta religião ensina:
Um
Deus pessoal que é desde toda
eternidade – um em três pessoas – se vê um dia a criar todo um mundo de
espíritos. Esse Deus da bondade cria esse mundo de espíritos para o bem deles,
mas ocorre que um desses espíritos se torna mau espontaneamente. Passa-se muito
tempo e Deus cria um outro mundo material; ele cria também o homem, igualmente
pelo seu bem. Deus cria o homem bem-aventurado, imortal e sem pecado. A
felicidade do homem consistia em gozar da vida sem trabalho; sua imortalidade
consistia em que esse gênero de vida deveria durar eternamente, sua inocência
consistia em não ter ele a noção do mal.
Este
homem foi seduzido no paraíso por aqueles espíritos da primeira criação que se
tornaram espontaneamente maus. Daí data a queda do homem, que engendra homens
decaídos como ele, e depois desse tempo os homens conheceram o trabalho, as
doenças, o sofrimento, a morte, a luta física e moral; quer dizer que o homem
fantástico (antes da queda) decifra a realidade, tal qual nós a conhecemos, da
qual nós não temos nenhum direito, nenhuma razão de a representarmos
diferentemente.
O
estado do homem que trabalha, que sofre, que escolhe o bem e repousa no mal,
que morre, – este estado que é a realidade e fora da qual nós nada podemos
conceber, não é, segundo a doutrina desta religião, o estado normal do homem,
mas um estado que não lhe é natural, um estado temporário. [17]
[pp. 118-121]
Embora este estado, segundo essa doutrina, dure, por toda a
humanidade, a datar da expulsão de Adão do paraíso, isto é, do começo do mundo
até o nascimento de Jesus, e dure depois de Jesus exatamente nas mesmas
condições, os fiéis devem se persuadir que este é um estado anormal e
temporário. Segundo essa doutrina, o Filho de Deus – Deus mesmo, a segunda
pessoa da Trindade, foi enviado por Deus sobre a terra sob o aspecto de um
homem para tirar o homem desse estado temporário e anormal, para livrá-lo de
todas as maldições lançadas por esse mesmo Deus devido ao pecado de Adão, e
reintegrá-lo ao seu estado anterior, normal, de felicidade, ou seja, de
imortalidade, de inocência e de ociosidade. – A segunda pessoa da Trindade –
Jesus Cristo, segundo essa doutrina, por aquilo mesmo que os homens lhe condenaram
a morte, resgatou o pecado de Adão e pôs fim a esse estado anormal que durava
desde o começo do mundo. E, desde então, o homem que têm fé em Jesus volta a
ser aquilo que era o primeiro homem no paraíso, isto é, imortal, inocente e
ocioso.
A
doutrina não se estende demais sobre a parte prática da redenção em virtude da
qual, após Jesus, a terra recomeçou, para os crentes, a ser fértil sem o
trabalho em todo lugar, as doenças cessaram e as crianças começaram a nascer de
suas mães, sem dor, porque é difícil assegurar àqueles que são extenuados pelo
trabalho excessivo e assaltados pelo sofrimento, por mais crentes que eles
sejam, que o trabalho é leve e o sofrimento inofensivo. Mas a parte da doutrina
que proclama a abolição da morte e do pecado é afirmada com uma força
redobrada.
Assim
se afirma que os mortos continuam vivos. E como os mortos não podem testemunhar
que eles estão mortos nem ratificar que eles estão vivos, bem como uma pedra
não pode afirmar que ela pode ou não pode falar, esta recusa de denegação é
admitida como prova e se afirma que os homens mortos não estão mortos. Assim se
afirma ainda com mais solenidade e segurança que, depois da vinda de Jesus, o
homem que tem fé Nele é livre de pecado, ou seja, que depois da vinda de Jesus,
o homem não tem mais a necessidade de se esclarecer na vida pela razão e de
escolher o que é melhor para ele. Ele só tem que crer que Jesus pagou pelos
seus pecados e eis que ele se torna infalível, quer dizer, perfeito.
O que,
segundo essa doutrina, chama-se verdadeira vida é a vida pessoal,
bem-aventurada, sem pecado e eterna, ou seja, uma vida que ninguém nunca
conheceu e que não existe. Mas, a vida que é, a única que nós conhecemos, em
que nós vivemos, e que toda a humanidade viveu e vive, é, segundo essa
doutrina, uma vida decaída, má, uma aparência somente daquela vida bem-aventurada
que nos é devida.
A vida
tal como é sobre a terra com todas as suas alegrias, seus esplendores, com a
luta da razão contra as trevas – a vida de todos os homens que viveram antes de
mim, toda a minha vida mesma, com minhas lutas interiores e os triunfos de
minha razão, tudo isso não é a verdadeira vida, é a vida decaída, má sem
retorno; mas a verdadeira vida, sem pecado, está só na fé, quer dizer, na
imaginação, quer dizer, na demência.[18]
[pp. 122-123]
Mas ao aprofundar o
princípio de sua negação eu pude me convencer que os céticos, assim como os
crentes, fazem da vida a mesma concepção falsa; aos seus olhos, ela não é
aquilo que ela é, mas aquilo que eles imaginam que ela deveria ser, e essa
concepção repousa exatamente sobre o mesmo fundamento que o dos crentes.
É
verdade que os céticos, que pretendem não crer em nada, não crêem nem em Deus,
nem em Jesus Cristo, nem em Adão; mas eles crêem na tese fundamental, que é a base
de sua falsa concepção, – no direito do homem a uma vida de beatitude, – ainda
bem mais firmemente que os teólogos.
A
ciência e a filosofia se ofereceram de forma bela como as árbitras e as guias
do espírito humano, elas não são mais do que suas servas. A religião lhes fornece
uma concepção de vida tomada totalmente de empréstimo e a ciência não faz mais
do que trabalhar no sulco traçado pela religião. A religião revela o sentido da
vida e a ciência não faz mais do que aplicá-lo às diferentes circunstâncias que
se produzem. Isso porque, quando a religião falsificou o sentido da vida
humana, a ciência elevada sobre esta base não pôde mais do que pôr em obra
essas mesmas concepções fantásticas. [19]
[pp. 123-125]
Nossa religião, nossa
ciência, nossa opinião pública, fazem coro para nos dizer que a vida a qual
estamos presos é malvada, e ao mesmo tempo elas afirmam que a doutrina que nos
ensina como é possível tornar-se melhor, melhorando assim a sua vida é uma
doutrina impraticável.
A
doutrina de Jesus que nos fornece um meio razoável de melhorar nossa vida por
nossas próprias forças é impraticável, porque Adão decaiu e o mundo mergulhou
no mal – diz a religião.
Essa
doutrina é impraticável porque a vida humana evolui segundo certas leis
independentes da vontade humana, diz nossa filosofia. A filosofia e a ciência
dizem, em outros termos, exatamente aquilo que diz a religião por meio de seu
dogma do pecado original e da redenção.
O
espiritualismo, com seus sábios aderentes, é a melhor prova que o ponto de
vista filosófico e científico não é independente, mas baseado sobre a doutrina
religiosa da beatitude eterna que seria a partilha natural do homem. [20]
[p. 125]
Crentes e céticos se
preocupam também pouco tanto uns como os outros com a questão de saber como
viver, como fazer uso dessa razão da qual somos dotados; eles se perguntam por
que nossa vida terrestre não é como aquela que nós nos imaginamos, e quando ela
se tornará como nós a desejamos. [21]
[pp. 144-145]
A verdadeira vida é
aquela que acrescenta algo ao bem acumulado pelas gerações passadas, que
aumenta essa herança no presente e a lega as gerações futuras.
Para
estar associado a essa vida, o homem deverá de boa vontade renunciar a sua
vontade pessoal para observar a vontade do Pai, que deu a vida aos Filhos (do
homem).[22]
Vós só vivestes a vida
pessoal, mas da vida do filho (do homem), é por ela que vós tereis vida eterna.
Em
todo o Evangelho, Jesus não ensina mais do que essa vida eterna. E por mais
estranho que pareça, Jesus, que ressuscitou em pessoa e que prometeu a
ressurreição geral, – Jesus não apenas jamais disse nada para afirmar a
ressurreição individual e a imortalidade individual além da morte, mas ao
contrário cada vez que ele encontrava essa superstição, introduzida nessa época
no Talmude e de que não há traços entre os profetas hebreus, – ele não deixa
jamais de negá-la.
[p. 149]
A idéia de uma vida
futura eterna não nos vem nem da doutrina judaica nem da de Jesus. Ela nos vem
de outra parte. Por mais estranho que isso pareça, não se pode deixar de dizer
que a crença em uma vida futura é uma concepção muito baixa e muito grosseira,
fundada sob uma idéia confusa da semelhança entre o sono e a morte, idéia comum
a todos os povos selvagens.[23]
[p.155]
Toda a doutrina de Jesus
consiste em ensinar a renúncia à vida pessoal, que é uma quimera, e a fazer
regressar essa vida pessoal na vida comum de toda a humanidade, na vida do
Filho do homem. Porém, a doutrina da imortalidade individual da alma, não
apenas não pode renunciar a vida pessoal, mas, pelo contrário, afirma a
individualidade a todo custo. [24]
Segundo
as idéias dos judeus, dos chineses, dos hindus, e de todos os homens que não
crêem no dogma da queda e da redenção, a vida é a vida tal como ela é. [25]
[p. 169]
A doutrina está na
renúncia à vida pessoal e vós exigis a glória pessoal, – uma recompensa
pessoal.
É somente na vida mundana
que os grandes deste mundo aproveitam e usufruem da glória e do poder pessoal;
mas vós, meus discípulos, vós deveis saber que o verdadeiro sentido da vida
humana não se acha na felicidade pessoal, mas no fato de servir a todos e de se
humilhar diante de todos... [26]
[pp. 170-171]
Em resposta a exigência
de seus discípulos, que lhe revelavam a sua inaptidão de compreender sua
doutrina, Jesus não ordena ter fé, quer dizer, modificar a idéia que eles fazem
dos bens e dos males que resultam da doutrina deles (Ele diz que isso é impossível),
mas Ele lhes explica o sentido da vida que é a base da fé, isto é, Ele lhes
ensina o verdadeiro discernimento entre o bem e o mal, do importante e do
secundário.
Jesus
explica a Pedro que ele não compreende a doutrina e que isto é a causa de sua falta
de fé. Jesus disse: a remuneração proporcional ao trabalho só tem importância
do ponto de vista de uma vida pessoal. A fé na recompensa pelo trabalho em
proporção ao trabalho decorre da doutrina da vida pessoal.
Essa
fé se baseia sobre a presunção de eu não sei que direitos que nós imaginamos
ter; mas o homem não tem direito a nada, não tem mais do que obrigações pelo
bem que recebeu, eis porque ele não pode contar com ninguém. Então, mesmo que
ele desse toda a sua vida, não restituiria tudo aquilo que recebeu, eis porque
o Senhor não pode ser injusto com ele. Mas se o homem faz valer seus direitos
sobre sua vida, se ele conta com o Princípio de tudo, do qual ele recebeu a
vida, ele só provará uma coisa, – que ele não compreende o sentido da vida. Os homens,
após receberem um benefício, exigem ainda outra coisa. Os trabalhadores da
parábola haviam se tornado ociosos, infelizes, – não mais viviam. Um senhor
lhes pega e lhes dá a felicidade suprema da vida, – o trabalho.
Eles
aceitam o benefício do senhor e depois ficam descontentes, porque eles não estavam
nitidamente conscientes da sua situação. Eles apenas vieram a trabalhar com sua
falsa doutrina do direito ao trabalho e à vida, por conseqüência, com a idéia
da remuneração que lhes é dada pelo trabalho. Eles não compreenderam que aquele
trabalho foi o bem supremo que eles receberam grátis e pelo qual eles deveriam
se esforçar em se mostrar reconhecidos, e não exigir um pagamento. [27]
[p. 172]
A fé não pode provir da
confiança em suas palavras; a fé provém unicamente da consciência de nossa
situação. A fé é baseada unicamente sobre a consciência racional daquilo que se
tem de melhor a fazer em uma dada situação. Ele demonstrou que não se pode
despertar esta fé nos outros pela promessa de recompensa ou pela ameaça de
punições; que está fé não será mais do que uma confiança muito fraca, que ruirá
à primeira prova, mas quanto à fé que remove montanhas – essa que não há nada
que não saiba ultrapassar, se funda sobre a consciência de nossa perda inevitável
caso nós não aproveitemos o aceno que nos é ofertado.
Para
ter fé, não se deve contar com alguma promessa de recompensa. Deve-se
compreender que o único meio de escapar ao inevitável naufrágio da vida, é a
vida conforme a vontade do Mestre. [28]
[p. 175]
Também a questão: Como se
faz para crer? é uma questão que testemunha que não se compreendeu a doutrina
de Jesus Cristo. [29]
[p. 220]
E eu adquiri a convicção
que a doutrina da Igreja, embora tenha levado o nome de “cristianismo”, parece
singularmente com as trevas contra as quais Jesus lutou e recomendou seus
discípulos a lutar.
[pp. 226-227]
Tudo aquilo que constitui
a vida atualmente, isto é, a atividade das sociedades humanas no sentido do
progresso em direção ao bem: o socialismo, o comunismo, as novas teorias
político-econômicas, o utilitarismo, a liberdade e a igualdade dos homens, das
classes sociais e das mulheres, todos os princípios morais da humanidade, a
santidade do trabalho, da razão, da ciência, da arte, tudo aquilo que
impulsiona o mundo e parece hostil à Igreja, tudo isso não é outra coisa que
resquícios da mesma doutrina produzida pela Igreja, mas que ela se esforça por
esconder cuidadosamente.
[p. 236]
O antagonismo entre as
explicações da Igreja, passando pela fé, e a verdadeira fé de nossa geração,
que consiste em obedecer às leis sociais e àquelas do Estado, é a entrada em
uma fase aguda, e a maioridade das pessoas civilizadas não é mais do que
ajustar sua vida à fé no sargento da cidade e no quartel.
Esta
situação seria pavorosa caso ela chegasse completamente a tal ponto; mas
felizmente há pessoas, as melhores de nossa época, que não se contentam com
essa religião, mas que possuem uma fé totalmente diferente relativamente àquela
que deve ser a vida dos homens.
Esses
homens são considerados como os maiores malfeitores, os mais perigosos, e
principalmente os mais incrédulos de todos os seres: e, no entanto, esses são
os únicos homens de nosso tempo que crêem na doutrina evangélica, se não em seu
conjunto, ao menos em parte.
Os
perseguidos e caluniados, esses são os únicos, que não se submetem sem
protestar às primeiras ordens que chegam; por conseqüência, esses são os únicos
em nossa época, que vivem uma vida racional, não uma vida animal; esses são os
únicos que possuem fé. [30]
[pp. 243-244]
A doutrina de Jesus não
pode contrariar de maneira alguma os homens de nosso século sobre a maneira de
considerar o mundo; ela está de acordo desde logo com sua metafísica, mas ela
lhes dá aquilo que eles não têm, aquilo que lhes é indispensável e aquilo que
eles procuram: ela lhes dá o caminho da vida, não um caminho desconhecido, mas
um caminho explorado e familiar a todos. [31]
Creia na ressurreição, no
Paraíso, no Inferno, no papa, na Igreja, nos sacramentos, na redenção; reza
conforme as prescrições de vossa religião, faça sua devoção, cante os hinos,
tudo isso não vos impede de praticar esses cinco mandamentos que vos foram
revelados por Jesus para o vosso bem: Não
vos tornai coléricos; Não cometei adultério; Não prestai juramento; Não vos
defendei pela violência; não fazei guerra.
Pode
acontecer de vós falhardes com uma dessa regras; vós cederdes talvez ao
treinamento, e vós violardes uma delas como
vós violais agora as regras de vossa religião,
os artigos do código civil ou os do código mundano. Da mesma forma, vós falhareis
talvez, num momento de treinamento, aos mandamentos de Jesus. Mas, nos momentos de
calma, não fazei o que fazeis agora, não vos organizai em uma existência que torna
difícil a tarefa de não vos tornardes
coléricos, de não cometerdes adultério, de não prestardes juramento, de não vos
defenderdes pela violência, de não fazerdes guerra; organize-vos em uma
existência que torne difícil fazer tudo aquilo. [32]
Vós não tendes atualmente
nenhuma regra, a não ser aquelas que são redigidas por homens que vós não
estimais e postas em vigor pela polícia. A doutrina de Jesus lhes dá essas
regras, que, seguramente, estão de acordo com vossa lei, porque vossa lei do
“altruísmo” ou da vontade única não é outra coisa que uma má paráfrase dessa mesma
doutrina de Jesus. [33]
[1] Cf. as cartas a Heinrich Köselitz de 13 de fevereiro
de 1888 e de 26 de fevereiro de 1888. Ver também: Souladié, Yannick. “Cristo e Anticristo: figuras da inversão dos
valores em Nietzsche”. Tradução Ernani Chaves e Allan Davy Santos Sena. In: Estudos Nietzsche. Curitiba, v. 2, n. 2
(no prelo).
Montinari, Mazzino. La volonté de
puissance n’existe pas. Texte
établi et postfacé par Paolo d’Iorio, traduit de l’italien et précédé d’une note
par Patricia Farazzi &
Michel Valensi. Paris: Editions de
l’éclat, 1996. Colli, Giorgio. Escritos
sobre Nietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2000. Morillas, Antonio. “Ecce homo (Turín 1888 –
Leipzig 1908). Historia de una ocultación”. Disponível em: <http://www.agonfilosofia.es/>.
[3] Cf. Fragmento póstumo 11 [246] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 29.
[4] Cf. Fragmento póstumo 11 [247] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[5] Cf. Fragmento póstumo 11 [248] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[6] Cf. Fragmento póstumo 11 [243] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[7] Cf. Renan, Ernest. “Vie de Jésus” ; in: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. “O encantador doutor que perdoava a todos
desde que o amassem, não poderia encontrar muito eco nesse santuário de
disputas vãs e de sacrifícios vis [ou seja, o Templo]” (Chap 13, p. 154).
[8] Cf. Fragmento póstumo 11 [242] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[9] Cf. I Samuel, 12: 21; expressão cuja tradução varia:
“coisas vãs”, “outros deuses”, “falsos deuses”, na Bíblia de Jerusalém
recorreu-se a “ídolos de nada”, o que se adéqua bem ao contexto da passagem de
Tolstói.
[10] Cf. Fragmento póstumo 11 [249] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[11] Cf. Fragmento póstumo 11 [250] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[12] Cf. Fragmento póstumo 11 [252] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[13] Cf. Fragmento póstumo 11 [253] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[14] Cf. Fragmento póstumo 11 [254] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[15] Cf. Fragmento póstumo 11 [268] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[16] Cf. Fragmento póstumo 11 [269] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 35.
[17] Cf. Fragmento póstumo 11 [262] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[18] Cf. Fragmento póstumo 11 [263] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[19] Cf. Fragmento póstumo 11 [264] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[20] Cf. Fragmento póstumo 11 [265] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[21] Cf. Fragmento póstumo 11 [266] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[22] AC § 43.
[23] Cf. Fragmento póstumo 11 [255] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[24] Cf. Fragmento póstumo 11 [256] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[25] Cf. Fragmento póstumo 11 [255] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[26] Cf. Fragmento póstumo 11 [270] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[27] Cf. Fragmento póstumo 11 [270] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[28] Cf. Fragmento póstumo 11 [271] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[29] Cf. Fragmento póstumo 11 [260] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[30] Cf. Fragmento póstumo 11 [277] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[31] Cf. Fragmento póstumo 11 [277] de novembro de 1887 -
março de 1888.
[32] Cf. Fragmento póstumo 11 [273] de novembro de 1887 -
março de 1888; AC § 33.
[33] Cf. Fragmento póstumo 11 [274] de novembro de 1887 -
março de 1888.
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