segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

NIETZSCHE E BRANDES




Correspondência final entre Nietzsche e Brandes

A realização da Transvaloração de todos os valores

Apresentação e tradução de Allan Davy Santo Sena
Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas/Bolsista CNPq (allandavy@hotmail.com).

Foi em uma carta enviada a Nietzsche de Copenhague, datada de 26 de novembro de 1887, por Georg Brandes, que uma tardia, auspiciosa e muito frutífera amizade teve início entre o filósofo e o seu admirador dinamarquês, professor de literatura da Universidade de Copenhague e conferencista de renome internacional. Uma amizade importante, que finalmente aliviaria um pouco a solidão enfrentada por Nietzsche, e que constituiu um grande estímulo para a sua fervorosa e extremamente produtiva última fase de pensamento. Brandes declara nessa carta que havia recebido do editor de Nietzsche a obra Além de bem e mal, seguida mais tarde por Humano, demasiado humano, e Genealogia da moral, lidas por ele com profundo interesse. Brandes afirma:

É uma honra para mim, ser conhecido por você, e conhecido de maneira que você pôde desejar ganhar em mim um leitor. Um novo e original espírito sopra para mim de seus livros. Eu ainda não compreendi completamente o que eu li; eu nem sempre posso acompanhar sua intenção. Mas eu encontrei muito do que se harmonize com minhas próprias idéias e simpatias, a depreciação dos ideais ascéticos e a profunda repugnância para com a mediocridade democrática, seu aristocratismo radical.

Brandes diz ser algo simplesmente espantoso o fato de nunca ter ouvido falar antes do filósofo. Nietzsche lhe responde de Nice, em 2 de dezembro de 1887, iniciando a carta com a seguinte declaração: “Meu caro senhor, um par de leitores que nos guarde a honra sobre si mesmo ou então nenhum leitor –  nisso reside o meu desejo”. Nietzsche lista os seus poucos leitores, entre os quais ele inclui: Jacob Burckhardt, Hipolite Taine, Bruno Bauer e Richard Wagner. É nesta carta que surge sua famosa observação: “A expressão ‘radicalismo aristocrático’, que você empregou, é excelente. É, permita-me dizer, a coisa mais inteligente que eu já li a meu respeito”. Na verdade, um dos motivos que levou Brandes a apresentar, em suas futuras conferências sobre Nietzsche, o aristocratismo do filósofo sob o epíteto de “radical”, foi a tentativa de acentuar a continuidade e, ao mesmo tempo, a diferença de intensidade entre o aristocratismo com nuanças de Ernest Renan, seu rêve de uma república de “savants” e de uma tirania dos “dévas” (deuses ou heróis em sânscrito) anelado em seu Dialogues philosophiques, e aquele existente em Nietzsche. Em Crepúsculo dos ídolos, na seção 2 de “Incursões de um extemporâneo”, Nietzsche já antecipa sua posição com relação a essa aparente aproximação entre suas idéias e os sonhos de Renan que vários contemporâneos seus não tardarão a fazer assim que suas obras se tornarem conhecidas [1]. Renan, diz o filósofo, “deseja, com ambição nada pequena, representar um aristocratismo de espírito: mas, ao mesmo tempo, põe-se de joelhos ante a doutrina oposta, o évangile des humbles, e não apenas de joelhos”.
Ao todo foram 22 cartas trocadas, 10 de Brandes e 12 de Nietzsche, incluído um bilhete fruto do delírio que precedeu o colapso mental do filósofo. A carta que gostaríamos de apresentar em especial é a que Nietzsche envia a Brandes em 20 de novembro de 1888, a última antes que o filósofo mergulhasse na demência algumas semanas mais tarde. Acreditamos que essa carta exerça uma importância capital para a compreensão da intenção de Nietzsche sobre o destino que ele queria dar ao conjunto de seus últimos escritos. Nessa carta, o Ecce Homo é apresentado como um “prelúdio”, um verdadeiro atentado contra o Crucificado, que prepararia o terreno para O Anticristo, que, pela primeira vez, é identificado como sendo toda a Transvaloração de todos os valores, e não somente o seu primeiro livro como havia sido planejado anteriormente. Não só o projeto intitulado a Vontade de poder fora, portanto, abandonado, como também os outros três livros da Transvaloração passam a ser tidos como desnecessários, ou, em nossa interpretação, seus problemas passam a ser vistos como solucionados pelo O Anticristo, por fim visto como uma “Maldição ao cristianismo”, a verdadeira condição para que uma transvaloração se realize. Ao assinar a carta, Nietzsche se refere a si mesmo como “monstro” precisamente no sentido desse monstro histórico-mundial chamado Anticristo. [2]
Outro ponto para o qual gostaríamos de chamar atenção na carta de 20 de novembro de 1888, encontra-se na declaração de Nietzsche a respeito de Dostoiévski. Para a compreensão do contexto dessa passagem, reproduzimos aqui também trechos de uma carta de Nietzsche a Brandes de 20 de outubro e uma de Brandes a Nietzsche de 16 de novembro. Como veremos, Brandes, em sua carta, expressa uma opinião extremamente negativa a respeito de Dostoiévski. Segundo o dinamarquês, toda a moral do novelista russo expressa aquilo que Nietzsche denomina de moral de escravos. Em sua carta de 20 de novembro de 1888, Nietzsche diz estar de pleno acordo com a declaração de Brandes a respeito de Dostoiévski, mas confessa nutrir uma profunda gratidão pelo novelista devido a todo o conhecimento que este lhe forneceu no campo da psicologia. A afirmação de Nietzsche é extremamente significativa porque nos fornece um importante dado para podermos delimitar com maior precisão em que sentido se dá a recepção de Dostoiévski na obra do filósofo, e, para isso, a comparação que ele irá fazer entre a sua relação com o russo e a sua relação com Pascal é fundamental, no sentido de percebermos que Nietzsche não adota a visão de mundo, o pano de fundo moral das obras do novelista, mas somente sua argúcia no escrutínio psicológico dos sentimentos do homem moderno; Dostoiévski lhe fornece, pois, um “precioso material psicológico”, assim como Pascal. No fragmento póstumo 9 [126] do outono de 1887, Nietzsche se refere ao pessimismo russo de Tolstói e Dostoiévski associado com os valores da religião da compaixão. Na seção 7 de O Anticristo, em que a moral da compaixão é duramente criticada, Nietzsche afirma que o perigoso acúmulo de compaixão que aparece no caso de Schopenhauer também se faz presente “em toda a nossa décadence artística e literária, de São Petersburgo a Paris, de Tolstói a Wagner”. Acreditamos que o fato de Dostoiévski não figurar ao lado de Tolstói ou mesmo no lugar dele nessa passagem, não se deve ao fato do filósofo se mostrar, nesse momento, mais simpático à moral de Dostoiévski do que antes, e sim muito mais à necessidade de Nietzsche procurar manter Dostoiévski ao seu lado como aliado em sua crítica ao cristianismo, afinal, no fragmento 15 [9] da primavera de 1888, é dito que o novelista russo teria “adivinhado” o autêntico tipo psicológico de Jesus, ou seja, idiota. E, na seção 31 de O Anticristo, Nietzsche lamenta o fato de que um Dostoiévski não tenha vivido na proximidade de Jesus, “esse interessantíssimo décadent”, isto é, “alguém que pudesse perceber o arrebatador encanto dessa mistura de sublime, enfermo e infantil”. Durante muito tempo, estipulou-se que, ao classificar Jesus como idiota, Nietzsche estaria fazendo uma referência direta ao romance O idiota de Dostoiévski. Contudo, não há nenhuma comprovação em póstumos ou em cartas de que ele tenha de fato lido esse romance. De todo modo, o fragmento 15 [9] da primavera de 1888, atesta que alguma influência houve nesse caso, talvez de outros romances, como de Os demônios, no qual a descrição da “harmonia eterna” experimentada pelo personagem Kírilov, encontra bastante similaridade com a descrição fisio-psicológica que Nietzsche faz de Jesus como alguém que encontrou seu reino de Deus nos seus sentimentos mais íntimos, como um estado de coração. Sendo assim, a importância que vemos na declaração em que Nietzsche acata o juízo negativo de Brandes a respeito da moral de Dostoiévski, encontra-se no fato de que isso talvez indique que o autêntico evangelho vivido por Jesus, apesar de ser uma experiência, uma prática de vida, essencialmente antagônica à doutrina cristã, livre de todo ressentimento, não represente, para Nietzsche, o modelo de um tipo elevado de vida, ou seja, aquele tipo mais elevado de homem contra o qual o cristianismo travou uma verdadeira guerra de morte, como o filósofo afirma na seção 5 de O Anticristo. Jesus é, para Nietzsche, tão somente um tipo natural, honesto e não ressentido de décadence; uma décadence que não representa uma ameaça para que a vida atinja o seu ápice (como é o caso do cristianismo), porém, ainda assim, uma decadénce. E é também nessa carta de 20 de novembro, que Nietzsche afirma claramente que tipo de homem representa aquele ideal mais elevado, a saber, o homem do Renascimento, “César Bórgia como papa” (ver O Anticristo § 61). Nietzsche, contrário aos alemães, contrapõe César Bórgia ao Parsifal de Wagner: “A quem sussurrei que deveria procurar em torno por um Cesare Borgia, não por um Parsifal, este não confiou em seu ouvido” (Ecce Homo, Porque escrevo livro tão bons § 1). Segundo Campioni, é sobretudo com Burckhardt e Taine que Nietzsche descobre o Renascimento latino e a era clássica, em oposição direta ao “Re-nascimento” germânico prometido pela ilusão wagneriana. Em Burckhardt ele encontra o homem individual e o “poeta filólogo” e consome a ruptura com o mito germânico do Volk. Nietzsche opõe à corrupção psicológica décadent de um Parsifal a ilusão estética sadia de um César Bórgia. Em contraposição ao Parsifal de Wagner, “esse típico idiota”, como diz Nietzsche no fragmento póstumo 23 [1] de outubro de 1888, o filósofo apresenta César Bórgia, esse centro de energia imoralista, essa “ave de rapina”; não uma figura histórica, mas um mito consciente, que perdeu, devido a sua larga exploração literária e estética suas características históricas precisas, tornando-se um símbolo da vida em seu estado mais elevado. [3]   
Na resposta que Brandes envia a Nietzsche em 23 de novembro de 1888, o crítico dinamarquês reforça ainda mais o seu juízo sobre Dostoiévski, ao analisar provavelmente a reprodução de um retrato do escritor russo e ao fazer uma descrição dos tipos que povoam os seus romances. Brandes faz também uma aproximação entre os tipos dos romances de Dostoiévski e os primeiros cristãos. A semelhança com a investigação fisio-psicológica que Nietzsche faz dos tipos que povoam os Evangelhos, aproximando-os dos tipos que Dostoiévski conhece, é impressionante, e indica que essa poderia ser uma comparação feita com bastante freqüência entre a crítica literária da época. O próprio Dostoiévski já direciona esse tipo de interpretação, afinal, seu grande sonho sempre foi encontrar um modo de conceber em seus escritos o ideal de homem puro, tendo como modelo principal Cristo, Don Quixote e os camponeses russos, e conferindo-lhe como benção a epilepsia da qual ele próprio sofria, que, para o escritor, era o preço a ser pago pela experiência tão divina que costumava preceder os seus ataques. [4] Vemos esse mesmo tipo de análise psicológica dos personagens de Dostoiévski e sua semelhança com os primeiros cristãos em Eugène-Melchior De Vogüe, na obra Le roman russe, uma possível fonte de Nietzsche. Na quarta seção do capítulo V, de Le roman russe, intitulado “La religion de la souffrance”, De Vogüe faz uma análise do príncipe Míchkin de O idiota de Dostoiévski, que está bem próxima das considerações psicológicas que Nietzsche faz acerca do tipo Jesus em O Anticristo:

“Dostoiévski se propôs, desde o início, em transportar para a vida contemporânea o tipo de um Don Quixote [...] porém, mais ainda, arrastado por sua criação, ele visa algo mais elevado, retirando da alma, para seu próprio espanto, os traços mais sublimes do Evangelho, ele tenta, num esforço desesperado, ampliar a figura segundo as proporções morais de um santo [...] Imagine um ser de exceção que seria homem pela maturidade de espírito, pela mais elevada razão, permanecendo, apesar disso, criança pela simplicidade do coração; que realizaria, em uma palavra, o preceito evangélico: ‘Sejais como as criancinhas’. Esse é o príncipe Míchkin, ‘o idiota’”. [5]   

Nietzsche utiliza a expressão “religion de la souffrance” em Além do bem e mal § 21 e Genealogia da Moral, III § 26. É possível que o uso da expressão em BM seja uma referência à obra Recordações da casa dos mortos de Dostoiévski. Já o uso feito em GM remete provavelmente, entre outras coisas, à chamada “‘compaixão’ tolstoiana”. Nietzsche também faz uma lacônica menção a De Vogüe no fragmento póstumo 25 [4] de dezembro de 1888 e início de janeiro de 1999. Para Nietzsche: “– Os Evangelhos nos mostram exatamente os mesmos tipos fisiológicos descritos nos romances de Dostoiévski” (Caso Wagner, “Epílogo”). E, em outro fragmento, argumentando que é contrário à história natural que as naturezas bem constituídas pudessem se ocupar desse “anêmico santo de Nazaré”, faz uma breve classificação das espécies que podem ser catalogadas nos romances de Dostoiévski: “Uma outra espécie lhe pertence [ao anêmico santo de Nazaré]: aquelas que Dostoiévski conhece, – comovidos, arruinados e perturbados abortos, plenos de idiotia e entusiasmo, de amor...” (FP 14 [90] primavera de 1888). Jesus não é o único idiota dos Evangelhos como mostra, por exemplo, a seção 42 de O Anticristo em que é dito sobre Paulo que aquilo “que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais lançou sua doutrina.”
Mas, após esse excurso, voltemos à última carta que Brandes enviou a Nietzsche. Interessa-nos não só essa aproximação entre os personagens de Dostoiévski e os primeiros cristãos, incluindo o próprio Jesus, mas também exatamente a profunda distância, que o crítico dinamarquês enxerga, entre esse mundo “peculiar e doente” (O Anticristo § 31) e a vida em sua plena exuberância representada pelo Renascimento e pelo homem do Renascimento, o cético, a ciência renascentista, o médico e o filólogo, tidos em O Anticristo como os inimigos naturais do cristianismo. Como já dissemos, Nietzsche afirmou que já havia concluído O Anticristo em sua última carta a Brandes, portanto, o crítico dinamarquês não exerceu nenhuma influência para as teorias adotadas no último escrito do filósofo, mas nossa hipótese é que a declaração de Brandes está plenamente de acordo com o posicionamento que o próprio filósofo adota, ou seja, de que tanto os personagens de Dostoiévski de modo geral, como o seu ideal de homem puro, ou seja, o tipo idiota (embora este represente uma decadência natural e que possua seu valor e importância para o decurso e efetivação da vida), estão extremamente distantes daquele tipo mais elevado de homem encontrado na Renascença. Infelizmente, Nietzsche não chegou a dar uma resposta a esta última carta de Brandes, pois logo lhe sobreveio o colapso de Turim. Brandes recebeu apenas um estranho bilhete postado de Turin, segundo o carimbo do correio, em 4 de janeiro de 1889, um indício do estado de delírio em que o filósofo se encontrava antes de seu colapso mental. 
Para a tradução das cartas de Nietzsche, cotejamos a KSB com as Lettere da Torino publicadas pela Adelphi (2008) e coordenadas por Giuliano Campioni, bem como as Lettres choisies publicadas pela Gallimard (2008) e coordenadas por Marc de Launay. E, para as cartas de Brandes, cotejamos a KGB com a seguinte obra: Friedrich Nietzsche. London: William Heinemann, 1914. Uma reunião de ensaios do crítico dinamarquês sobre o filósofo, juntamente com a correspondência completa entre os dois.

BIBLIOGRAFIA

BOURDEAU , Jean. Les maîtres de la pensée contemporaine, Paris, Alcan, 1904.

BRANDES, George. Friedrich Nietzsche. London: William Heinemann, 1914.

CAMPIONI, Giuliano. Les lectures française de Nietzsche. Traduit de l’italien par Cristel Lavigne-Mouilleron. Paris: Presses Universitaires de France, 2001, Cap. II, pp. 51-107.

MONTINARI, Mazzino. “La ‘volonté de puissance’ n’existe pas”. Trad. P. Farazzi et M. Valensi. Paris: Editions de l’Eclat, 1997. disponível em: < http://www.lyber-eclat.net/lyber/montinari/volonte.html >

NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. (KSA) Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazino Montinari. Berlin/München/New York: Walter de Gruyter/DTV, Band 6, 1988.

______. Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe. (KSB) Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazino Montinari. Berlin/München/New York: Walter de Gruyter/DTV, Band 8, 1988.

Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe. (KGB III/6), Briefe an Nietzsche. Januar 1887–Januar 1889. Herausgegeben von: Colli, Giorgio; Montinari, Mazzino. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1975.

______. Lettres choisis. Choix et presentation de Marc de Launay. Textes établis par Giorgio Colli et Mazzino Montinari. Traductions d’Henri-Alexis Batsch, Jean Bréjoux, Maurice de Gandillac et Marc de Launay. Paris: Gallimard, 2008.

______. Lettere da Torino. A cura di Giuliano Campioni, traduzione di Vivetta Vivarelli.  Milano: Adelphi, 2008.

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.  

______. O Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RENAN, Ernest. Dialogues et fragments philosophiques. Paris: Calmann Lévy, 1876.

VOGÜE, Eugène-Melchior. Le roman russe. Onzième édition. Paris : Plon-Mounrit et Gle, 1912.


CARTAS


KSB 8,
1134. Nietzsche a Brandes, Turin, 20 de outubro de 1888

Creio plenamente em você quando afirma que se pode propriamente “renascer na Rússia”; eu conto qualquer livro russo, sobretudo Dostoiévski (traduzido em francês, graças aos céus, não em alemão!!), entre os meus maiores alívios.  

KGB III/6,
606. Brandes a Nietzsche, Copenhague, 16 de novembro de 1888

É curioso como algo a respeito de Dostoiévski em sua carta e em seu livro coincide com minhas próprias impressões sobre ele. Eu mencionei você, também, em meu trabalho sobre a Rússia, quando tratei de Dostoiévski. Ele é um grande poeta, mas uma criatura abominável, absolutamente cristão em sua interioridade e, ao mesmo tempo, absolutamente sádico. Toda a sua moral é aquilo você batizou de moral de escravos.

­KSB 8,
1151. Nietzsche a Brandes, Turin, via Carlos Alberto, 6, III, 20 de novembro de 1888

Estimado senhor,

Perdoe-me se lhe respondo tão abruptamente. Estão ocorrendo agora em minha vida coincidências sem precedentes. Primeiro anteontem, e agora novamente. – Ah, se você soubesse o que eu havia acabado de escrever no momento em que sua carta me fez sua visita...
            Com um cinismo que se tornará histórico-mundial, eu agora narrei a mim mesmo: o livro chama-se “Ecce homo”, e é um atentado, sem a mínima consideração, contra o Crucificado: termina com trovões e tempestades [Wetterschlägen] contra tudo aquilo que é cristão ou infectado por cristianismo, até o ponto em que se perde a vista e a audição. Eu sou, afinal, o primeiro psicólogo do cristianismo e, como velho artilheiro que sou, posso pôr em campo armas pesadas, cuja existência nenhum adversário do cristianismo ao menos suspeitou. – O conjunto é o prelúdio [Vorspiel] da Transvaloração de todos os valores, a obra que jaz pronta [fertig] diante de mim: eu lhe juro que em dois anos teremos a terra inteira em convulsões. Eu sou uma fatalidade [Verhängniss]. –   
– Você adivinha o que leva a pior em “Ecce homo”? Como o tipo mais ambíguo de homem, como a raça mais execrável da história em relação ao cristianismo? Os senhores alemães! – Eu lhes disse coisas terríveis... Os alemães têm em sua consciência, por exemplo, o fato de terem desviado em seu sentido a última grande época da história, a Renascença – no momento em que os valores cristãos, os valores da décadence vinham abaixo, em que os instintos do mais elevado clero [Geistlichkeit] tinham sido superados pelos instintos contrários, os instintos da vida!... Atacar a Igreja – isso quer dizer restaurar o cristianismo. – César Bórgia como papa – isto seria o sentido do Renascimento, seu autêntico símbolo...
Não fique bravo comigo por tê-lo feito aparecer em um passo crucial do livro – escrevi agora há pouco – em um ponto em que eu estigmatizo a atitude dos meus amigos alemães ao meu respeito, o absoluto abandono [In-Stichgelassen-sein] tanto no que se refere à honra quanto à filosofia. Então você aparece inadvertidamente, envolto em uma gentil nuvem de glória...
Creio absolutamente [unbedingt] no que você disse a respeito de Dostoiévski, eu o estimo, por outro lado, como o mais valoroso material psicológico que conheço, – eu lhe sou estranhamente grato, ainda que ele vá de encontro aos meus instintos mais profundos. Mais ou menos como a minha relação com Pascal, a quem quase amo, por ter me ensinado uma infinidade de coisas; o único cristão lógico...      
            Anteontem eu li, encantado e como se estivesse em minha própria casa, Les mariés, do senhor August Strindberg. Minha sincera admiração, que somente é prejudicada pelo sentimento de que admiro, ao mesmo tempo, um pouco de mim próprio. Turin permanece minha residência.

Seu Nietzsche, agora um monstro...


Para onde devo enviar o “Crepúsculo dos ídolos ou: como se filosofa com o martelo”? Caso você permaneça mais 14 dias em Copenhague, nenhuma resposta se faz necessária. –

KGB III/6,
612. De Brandes a Nietzsche, Copenhague, 23 de novembro de 1888

­Meu caro senhor,

Sua carta me encontrou hoje em pleno calor do trabalho; estou realizando conferências sobre Goethe, repetindo cada conferência duas vezes e, ainda assim, as pessoas aguardam na fila por três quartos de hora, na praça na frente da Universidade, para garantir seu lugar na sala. Agrada-me estudar o maior dos maiores diante de tantas pessoas. Devo permanecer aqui até o fim do ano.
            Mas, por outro lado, há a infeliz circunstância que – como fui informado – um dos meus antigos livros, recentemente traduzido em russo, foi condenado na Rússia a ser queimado publicamente como “irreligioso”.
            Eu já temia a expulsão de meus dois últimos trabalhos na Polônia e na Rússia; agora eu devo tentar mobilizar toda a influência que tenho, para que eu obtenha permissão de conferenciar na Rússia neste inverno. Para piorar, praticamente todas as cartas enviadas por mim e para mim agora são lá confiscadas. Há uma grande ansiedade desde o desastre em Borki. Foi exatamente o mesmo pouco depois do famoso atentado. Todas as cartas foram apreendidas.
            Dá-me viva satisfação ver que você tenha novamente passado por tanta coisa. Acredite em mim, eu divulgo sua propaganda onde eu posso. Mais recentemente, na semana passada, eu recomendei fervorosamente a Henrik Ibsen que estudasse os seus trabalhos. Com ele também você tem alguma afinidade, ainda que seja uma afinidade muito remota. Grande, forte e não amado, mas ainda mais digno de amor, é essa pessoa singular. Strindberg ficará grato ao ouvir sua apreciação. Eu não conheço a tradução francesa que você mencionou; mas dizem aqui que todas as melhores coisas em Giftas (Maries) foram deixadas de fora, especialmente a espirituosa polêmica com Ibsen. Mas leia o seu drama Pere; há grandes cenas nele. Eu tenho certeza que ele ficaria contente em lhe enviá-lo. Porém, eu o vejo muito raramente; ele é tão tímido por conta de um casamento extremamente infeliz. Imagine isso, ele abomina sua mulher intelectualmente e não pode se afastar dela fisicamente. Ele é um monogâmico misógino!
            É curioso para mim que o traço polêmico ainda seja tão forte em você. Na minha juventude, eu era passionalmente polêmico; agora, eu só consigo expor; silêncio é minha única arma de ofensa. Eu logo passei a considerar um ataque contra um cristianismo o mesmo que escrever um panfleto contra lobisomens, isto é, contra a crença em lobisomens.
            Mas vejo que entendemos um ao outro. Eu também amo Pascal. Mas mesmo quando jovem eu estava ao lado dos jesuítas contra Pascal (nas Provinciales). A sabedoria mundana, eles estavam certos, é claro; ele não os compreendeu; mas eles o compreenderam e – que golpe de mestre de impudência e sagacidade! – eles mesmos publicaram suas Provinciales com notas. A melhor edição é aquela dos jesuítas. 
Lutero contra o papa, aí nós temos a mesma colisão. Victor Hugo, no prefácio de Feuilles d'Automne, faz essa excelente declaração: « On convoque la diete de Worms mais on Peint la chapelle Sixtine. II y a Luther, mais il y a Michel- Ange . . . et remarquons en passant que Luther est dans les vieilleries qui croulent autour de nous et que Michel- Ange n'y est pas. »
Examinemos o rosto de Dostoiévski: metade o rosto de um camponês russo, metade a fisionomia de um criminoso, nariz chato, pequenos olhos penetrantes sob pálpebras que tremem de nervoso, essa imponente e bem formada testa, essa boca expressiva que fala de tormentos inumeráveis, de melancolia abismal, de apetites doentios, de piedade infinita, inveja passional! Um gênio epiléptico, cujo exterior sozinho já fala do fluxo da mansidão que preenche seu espírito, da onda de agudeza quase elevando à loucura, e finalmente da ambição, do esforço imenso, e da vontade doente que resulta da intolerância da alma.
Seus heróis não são apenas pobres e lamentáveis, mas sensíveis simplórios, prostitutas nobres, freqüentemente alucinados, epilépticos dotados, candidatos entusiasmados ao martírio [begeisterte sucher des Martyriums], justamente o tipo que deveríamos supor entre os apóstolos e discípulos da primeira era cristã. Certamente nada poderia ser mais distante da Renascença.

Eu estou excitado para saber como apareci no seu livro.

Eu permaneço o seu fielmente devotado,

Georg Brandes.

KSB 8,
1243. Sem selo. Sem endereço completo, sem data. Escrito em letras grandes em um pedaço de papel (não em papel de carta) pautado a lápis, como as crianças costumam fazer. Carimbo do correio; Turin, 4 de Janeiro de 1889.

Ao meu amigo Georg

Depois de me haver descoberto, não é muito difícil me encontrar: a dificuldade agora é perder-me

O Crucificado


[1] Ver, por exemplo, Jean Bourdeau, Les maîtres de la pensée contemporaine, Paris, Alcan, 1904, pp. 129-130. Bourdeau chegou a ser indicado a Nietzsche por Taine para ser o tradutor do Crepúsculo dos ídolos
[2] Para um estudo sobre o abandono do projeto da obra Vontade de poder, sugerimos a leitura de Mazzino Montinari, “La ‘volonté de puissance’ n’existe pas”.
[3] Ver para isso, Giuliano Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, Traduit de l’italien par Cristel Lavigne-Mouilleron. Paris: Presses Universitaires de France, 2001, p. 154.
[4] Cf. Frank, Joseph. “Um ideal russo”. In: Dostoiévski: os anos milagrosos, 1865-1871. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2003, pp.321-449.
[5] De Vogüe, Eugène-Melchior. Le roman russe. Paris : Plon-Mounrit et Gle, Onzième édition, 1912, p. 258.

2 comentários:

  1. Que satisfação foi encontrar esse blogger, como também encontrar esse maravilhoso material aqui na internet de forma "gratuita". Fiquei emocionado com essa cartas de Nietzsche, já havia lido outras correspondências, mas nessa eu percebi com mais proximidade a imensidão do espírito de Nietzsche. Realmente, muito além do seu tempo. Gratidão!!!

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  2. Agradeço o seu comentário, Wanderson. Muito me alegra que a tradução dessa correspondência lhe tenha sido tão enriquecedora. Grande Abraço!

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