Nietzsche e o cristianismo
Allan Davy Santos Sena
Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) / Bolsista CNPq (allandavy@hotmail.com)
Trabalho elaborado em 2007, resultado da Bolsa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq – UFPA.
INTRODUÇÃO
O pensamento do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sempre manteve um constante embate com a doutrina cristã. Se Nietzsche, no estágio inicial de seu percurso filosófico, abstém-se de confrontar diretamente o cristianismo, isso se deve ao fato de que o autor já buscava encontrar interpretações amplamente distantes das principais correntes valorativas que sustentam o arcabouço moral cristão. Nietzsche contava obter sucesso em uma tal empreitada justamente por meio de um olhar e de um posicionamento estético sobre a existência (e não mais moral), que tem no fenômeno dionisíaco da arte grega sua mais pujante realização. No segundo período do pensamento nietzschiano, inicia-se o conflito aberto ao cristianismo, mormente enquanto fenômeno moral que tem por objetivo esvaziar de sentido todo e qualquer valor natural que pudesse garantir o surgimento de uma vida ascendente. É no derradeiro período de sua obra, sobretudo n’O Anticristo, todavia, que Nietzsche se detém definitivamente numa acirrada e extremada análise crítica do cristianismo e dos valores sustentados por tal doutrina. Não é por mero ateísmo que se quer blasfemo contra os pressupostos metafísicos que sustentam a teologia cristã que Nietzsche critica de forma tão contundente o cristianismo, e, sim, por entender que essa doutrina corrompeu e condenou todo olhar sadio sobre a existência, todo e qualquer solo de onde um tal olhar poderia brotar: a arte, a religião, a filosofia e a ciência. Para Nietzsche, a simples verificação da morte de Deus não é suficiente para livrar o ocidente da mácula moral cristã, com isso, na verdade, surge um perigo ainda mais abominável para o homem ocidental, a saber, o niilismo. É somente com a derrocada do nexo axiológico cristão, que se dá mediante o seu esclarecimento enquanto fenômeno fisio-psicológico, e por meio da confrontação do mesmo com um novo e diferente olhar sobre a existência, representado pela figura de Dionísio, que uma vida forte, saudável, e ascendente pode vir a surgir.
A crítica de Nietzsche ao cristianismo tem como ponto de partida Aurora (1881) e assume sua confluência definitiva em O Anticristo (1888). No último aforismo d’O Anticristo, Nietzsche condena o cristianismo como a suprema corrupção da humanidade[1], visto que nele o valor dado à vida foi totalmente rechaçado. De acordo com Nietzsche, o principal crime cometido pelo cristianismo foi ter imposto uma interpretação para o sofrimento na qual a vida é peremptoriamente negada. O sentido dado ao sofrimento é uma preocupação que atravessa todo o percurso filosófico de Nietzsche[2] desde O nascimento da tragédia até Ecce Homo. E é justamente no encerramento de sua autobiografia que Nietzsche deixa claro sua resposta dada ao problema de como é possível lidar com o sofrimento sem que para isso se tenha que negar a vida, contrapondo a concepção cristã com uma nova visão presente em seus escritos mediante a oposição entre Dionísio e o Crucificado: “Fui compreendido? – Dionísio contra o Crucificado...” (EH, “Por que sou um destino”, §9). Destarte, o presente trabalho procurará mostrar, a partir do significado que se encerra no embate dessas duas figuras, como Nietzsche propõe que se encare a dor, o sofrimento e a morte.
1 – O CRISTIANISMO COMO NEGAÇÃO DA VIDA
Para Nietzsche, o cristianismo representa uma negação da vida, algo nascido da fraqueza e do ressentimento como instrumento de vingança contra a efetividade. A visão de mundo cristã, segundo Nietzsche, configura-se a partir da prática do niilismo, que é a lógica da décadence, tendo como meta caluniar e falsear a realidade como artifício de dominação.
1.1 – O “reino dos céus” como fruto da décadence e do niilismo
Em O Anticristo, Nietzsche sustenta que o cristianismo representa uma concepção de mundo que brota diretamente da fraqueza, devido a isso tal religião interpreta todo vir-a-ser como uma constante ameaça, todo movimento natural do mundo, com sua instabilidade, imprevisibilidade e falta de sentido, como um perigo inominável. O cristianismo é, pois, em sua essência, uma religião da décadence[3], porquanto nele as forças debilitadas que se desagregam no interior de um complexo orgânico que se tornou decrépito anseiam pelo poder, invertendo, para isso, as estimativas de valor adequadas a uma vida forte, a fim de conservar as condições que mantém em vida as naturezas que se tornaram degeneradas. Duas conseqüências nefastas surgem de um tal fenômeno: o ressentimento para com a efetividade e o desejo de vingança contra a mesma, uma vez que, para uma natureza fraca que vê sua sede de domínio obstruída por sua própria condição fisiológica, falsificar a realidade surge como único artifício de conservação, retardando, pois, a possibilidade do exercício de poder para um futuro imaginário. Dessa maneira, elabora-se um novo mundo a partir da completa oposição ao mundo imanente, a saber, o “reino dos céus”. Como explica Nietzsche: “– Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia, desvaloriza e nega a realidade” (AC, §15, p. 20-21). Com semelhante mundo fantasioso, o fraco vinga-se, assim, da realidade, que para ele se tornou insuportável, excluindo de tal mundo qualquer fator que lhe seja nocivo e declarando-o como o verdadeiro mundo, aquele que lhe aguarda como derradeira recompensa, mantendo-se, deste modo, na expectativa de um futuro domínio.
Nietzsche sustenta, pois, que o cristianismo é tributário do platonismo, que o dualismo de Platão é levado às últimas conseqüências nessa religião em que o mundo verdadeiro é totalmente esvaziado de valor. Daí a famosa sentença em Além de bem e mal: “o cristianismo é platonismo para o ‘povo’” (BM, prefácio, p. 31). Quando se cria deliberadamente um mundo imaginário que é o inverso do mundo efetivo, ou seja, fixo, invariável, eterno, desprovido de males e dificuldades, assim como aquilo que é o belo, bom e verdadeiro na metafísica de Platão, reprova-se a vida em sua totalidade, visto que as próprias condições para que ela se efetue são, dessa forma, rejeitadas. Todavia, isso só se torna necessário para naturezas que já malograram na vida, para àqueles seres fracos que vêem no próprio curso natural das coisas um ambiente no qual sua sobrevivência torna-se impossível. Por conta disso, Nietzsche assevera: “Quem tem motivo para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada...” (AC, §15, Ib.). A vida é, deste modo, categoricamente destituída de todo valor e sentido pela perspectiva cristã, que transfere todo valor dado a única vida possível, neste mundo, para uma outra vida, em um mundo absolutamente fictício, retalhado, anêmico e atrofiado, portanto, para uma vida irrealizável e ilusória. Como explica Nietzsche: “Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ – no nada –, despoja-se a vida do seu centro de gravidade” (AC, §43, p. 50). Conseqüentemente, por dividir o mundo em dois, o cristianismo conduz a humanidade numa via inexorável em direção ao niilismo, uma vez que tal vontade de nada, em que os supremos valores que fundamentam a vida perdem todo o sentido, constituí-se a própria lógica da décadence[4].
O cristianismo é visto por Nietzsche, portanto, como uma negação da vida, como algo nascido de um profundo rancor perante a efetividade, como um aniquilamento da vontade de viver e dos valores vitais em favor de um mundo quimérico criado por aqueles que não suportam as dificuldades e reveses inerentes ao mundo real e desejam vingar-se dele. Por conseguinte, Nietzsche assevera no Crepúsculo dos Ídolos[5]:
Não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós, nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida “outra”, “melhor” (CI, “A ‘razão’ na filosofia”, §6, p. 29).
1.2 – O Deus aranha cristão como degeneração do conceito de Deus em contradição da vida
De acordo com Nietzsche, o estado de vida debilitado é igualmente sancionado no conceito cristão de Deus, na visão de “Deus como deus dos doentes, Deus como Aranha, Deus como espírito” (AC, §18, p. 23). O deus de uma nação dominadora é a própria transfiguração da vida ascendente, a santificação de tudo o que torna uma vida saudável possível (como era outrora o próprio Deus de Israel). Um tal deus conserva em si o aspecto duro e amargo da vida, é tão obsequioso quanto malévolo sempre que necessário, ele é o símbolo máximo da força e orgulho de uma nação. Contudo, para um povo subjugado que vê na submissão sua própria condição de existência, um outro tipo de deus se faz mister: um deus que perdoa, que ama a todos sem distinção; não mais o deus de uma nação, mas sim um deus universal que protege os fracos dos fortes. Esse deus surge como uma rejeição direta do que representa o deus dos dominadores, como vingança contra aquele deus agora transformado em demônio. O deus dos subjugados se torna, então, apenas o Deus bom: fraqueza torna-se, aqui, sinônimo de bondade. Logo, o Deus cristão nada mais é do que um deus da décadence, o sintoma de um retrocesso fisiológico que ocorre quando há um declínio da vontade de poder: “A divindade da décadence, mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris, torna-se por necessidade o deus dos fisiologicamente regredidos, dos fracos” (AC, §17, p. 22). Dessa forma, no conceito cristão de Deus, tudo o que é natural torna-se condenável, todos os impulsos presentes em um organismo saudável são reprovados: “Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida” (AC, §18, p. 23). A vida, longe de ser afirmada e glorificada como ocorre no deus de uma nação vitoriosa, é absolutamente condenada e tida como maldição mediante o conceito cristão de Deus: “Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta!” (AC, Ibidem). Isso se deve ao fato de que no cristianismo a vontade de poder se transmuta em incapacidade para o poder, vacilando e se tornando débil, cessando de buscar superação e sendo direcionada a um reino de pura abstração, puro conceito, o que representa um mero desvio para o louvor do nada, visto que “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...”[6] (GM, III, §28, p. 149) e no conceito cristão de Deus “o nada [é] divinizado, a vontade de nada canonizada!” (AC, §18, p. 23). A fraqueza, a decadência é, portanto, sacralizada no cristianismo mediante o seu Deus, que constantemente vigia e julga como condenável e maligna toda força, sensualidade, beleza, riqueza, e saúde representando, assim, a negação da própria vida.
1.3 – A filiação do cristianismo à moral dos escravos
O cristianismo é visto por Nietzsche, outrossim, como a mais pérfida calamidade, porque nele a moral deixa de ser um instrumento a favor da vida, tornando-se soberana sobre a mesma e passando a ser uma verdadeira declaração de guerra contra os valores que a afirmam. Isso porque o cristianismo representa um refinamento do instinto judaico, principal responsável por uma desnaturalização inaudita dos valores naturais que condicionam o crescimento e florescimento de uma vida forte e saudável. Na primeira dissertação de Genealogia da moral, Nietzsche mostra como diferentes condições de existência dão origem a morais distintas[7]: de um estado de vida saudável surge uma moral dos nobres, mas, por outro lado, de um estado de vida insalubre surge uma moral de escravos. No entender de Nietzsche, a palavra “bom” não nasce como sinônimo de ações “não egoístas” como normalmente se supõe, é somente com um declínio dos juízos de valores que essa dicotomia “egoísta” e “não egoísta” se impõe. A origem dos valores está, na verdade, em uma plena afirmação de tudo aquilo que representava uma elite dominadora em uma sociedade. Assim sendo, esclarece Nietzsche: “Foram os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, e vulgar e plebeu” (GM, I, §2, p. 19). Por conseguinte, mediante um pathos da distância, os aristocratas se outorgaram o direito de criar valores, opondo o que viam como “bom”, a saber, tudo aquilo que legitimava a superioridade de uma elevada estirpe senhorial, o “ruim”, isto é, tudo aquilo que se referia à casta inferior, o fraco, o baixo, plebeu, escravo, desafortunado, feio, digno de pena. A casta inferior, porém, passou a nutrir um rancor pelos que lhe oprimiam. O ressentimento, a mágoa perante o real, o efetivo, foi o resultado disso. O nobre louva e ama o mundo apaixonadamente, enquanto que o escravo não mais o suporta, pelo contrário, nutre um ódio radical a tudo aquilo que o afirma. Ora se os valores nobres pretendem legitimar a existência, os valores emanados do instinto de rebanho torna-la-ão indigna, refutada, indecente. Enquanto toda moral nobre é gerada por meio de uma triunfal afirmação, um dizer Sim a si mesmo, a moral dos escravos, nascida do ressentimento, diz Não a um “outro”, a um “não-eu”. O nobre estabelece o oposto apenas com o objetivo de legitimar a si mesmo como bom; aquilo que denomina “ruim” é apenas uma sombra, um conceito vago e pálido. Diferente dos escravos, para os quais o conceito “mau”, isto é, o dominador, o opressor, o “bom” para a moral aristocrata, é o seu ponto de partida na criação de sua própria moral. Nietzsche crê que justamente “com os judeus principia a revolta dos escravos na moral” (BM, §195, p. 110). Para ele, o povo de Israel foi o responsável pela mais bem sucedida vingança de seus inimigos e conquistadores através de uma radical inversão dos valores. Como patenteia o filósofo:
Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados...!” (GM, I, §7, p. 26).
Segundo Nietzsche, na grande época do povo judeu, no seu passado glorioso, sua moral também servia para legitimar a existência. O Deus Javé era a expressão de gratidão do povo judeu para consigo mesmo e para com a natureza. No entanto, quando o “povo eleito” se viu sob o jugo do dominador estrangeiro, colocado “ante a questão de ser ou não ser” (AC, §24, p. 29), tomou a sagaz e fatídica decisão de “ser a todo custo” (Id. Ib.), valendo-se de todos os instintos da décadence como um artifício de autoconservação, ainda que tal conservação fosse de seu estado debilitado, ou melhor, manter-se debilitado foi a única via encontrado por esse povo para conservar sua existência, garantindo ainda para si uma sensação de poder mediante uma vingança contra o dominador empreendida pela inversão total dos valores que condicionam e legitimam o modo de vida deste último. Tudo o que é natural, “todo o mundo interior e também exterior” (AC, §24, p. 29) foi, por conta disso, totalmente caluniado e arrasado pela moral judaica. Deste modo, o fenômeno fisiológico da décadence não é, aqui, meramente algo que comanda ele se torna meio de conservação de uma vida declinante, arma de combate contra um tipo de vida ascendente que deve ser destruído para que o fraco possa de alguma maneira dominar. Como atesta Nietzsche:
Eles [os judeus] puseram-se à parte, contrariamente a todas as condições nas quais era possível, era permitido um povo viver até então, eles criaram a partir de si mesmos um conceito oposto às condições naturais – eles inverteram, sucessivamente e de modo incurável, a religião, o culto, a moral, a história, a psicologia, tornando-os a contradição de seus valores naturais (AC, §24, p. 29).
O herdeiro dessa transvalorização judaica foi justamente o cristianismo, uma vez que, como esclarece Nietzsche, “[...] ele [o cristianismo] não é um movimento contra o instinto judeu, é sua própria conseqüência, uma inferência a mais em sua lógica apavorante“ (AC, §24, p. 29). Por ter sido engendrado no seio de uma moral de escravos, o cristianismo possui uma refinada suspeita por tudo o que é alegre, belo, rico e saudável, como reação contra aquilo que representa o poderoso. Quando o cristianismo surge, as camadas baixas da população se voltam não mais apenas contra o dominador estrangeiro, mas também e principalmente contra o próprio estado sacerdotal que, nesse momento, já detinha um vasto poder. O cristianismo representa, assim, o derradeiro e mais implacável ataque contra tudo o que possa exercer domínio, contra tudo o que representa o “mundo”, o “poder temporal”, o “terreno”. No cristianismo, a chegado do “reino de Deus” deixa de ser aguardada em um aquém e se dirige para um além. Por conseguinte, por meio da moral cristã a vida atual é negada e reprovada ampla e indistintamente, interpretada como falta, punição, desdita, em favor de um mundo imaginário, de um reino fictício, onde finalmente os escravos serão os nobres e dominadores.
1.4 – O cristianismo como promovedor do estado doentio
A realidade é totalmente desconstruída pela perspectiva cristã[8], que é a perspectiva da doença, da debilidade, da languidez. Mas o cristianismo representa para Nietzsche um perigo não só por provir de um olhar insalubre sobre a vida, e sim porque a doença é a sua própria condição de sobrevivência[9], por isso ele anseia tornar o mundo todo doente. Devido a isso, Nietzsche dirá: “[...] – tornar doente é a genuína intenção oculta de todo sistema de procedimentos de salvação da Igreja” (AC, §51, p. 61). Dessa forma, mesmo quem não sofre com a vida é levado pelo cristianismo a aprender a sofrer (e quem já sofre com ela é levado a sofrer ainda mais) mediante o sentimento de pecado. Na idéia do livre-arbítrio, intimamente associada àquele sentimento, professada pelo cristianismo, o homem forte tem a sua mais fatal ameaça, porquanto o cristianismo quer fazer ver que agir de maneira natural é uma escolha, que ser forte e ser fraco também o é, sendo que aquele que escolhe ser forte está condenado como mau, como pecador por toda a eternidade. O verme do remorso, nutrido pela ficção psicológica do pecado, visa, dessa forma, acentuar o sofrimento do fraco e provocar sofrimento no forte. Por conta disso, Nietzsche afirma: “Ninguém é livre para tornar-se cristão: não se é ‘convertido’ ao cristianismo – é preciso ser doente o bastante para isso” (AC, §51, p. 61). O sucesso do cristianismo consiste, então, para Nietzsche, em sua função narcotizante, ou seja, ele oferece alívio para aquilo que, em grande mediada, ele mesmo provoca[10]. Contudo, nisso está o seu mais funesto perigo, pois, sendo narcótico, o cristianismo impede que os males humanos sejam combatidos de forma efetiva, atingindo somente os efeitos dos mesmos e nunca as suas causas. O que ocorre, na verdade, é exatamente o oposto, como Nietzsche adverte: “Suprimir alguma aflição [vai] de encontro ao seu interesse mais profundo – [ele vive] de aflições, [ele cria] aflições, a fim de eternizar-se...” (AC, §62, p. 79). Não obstante, o maior perigo do sistema narcotizante cristão não é oferecer apenas paliativos para as mazelas humanas, e sim aplicar tais anestésicos em males imaginativos forjados por ele próprio (como é o caso da idéia de pecado) os quais ofuscam os efetivos problemas humanos, impedindo que qualquer superação possa vir a ocorrer. Por conseguinte, Nietzsche adverte em Aurora[11]:
Foi através dos meios de consolo que a vida recebeu o fundamental caráter sofredor em que hoje se crê; a maior doença dos homens surgiu do combate as suas doenças, e os aparentes remédios produziram, em longo prazo, algo pior do que aquilo que deveriam eliminar (A, §52, p. 45).
1.5 – O cristianismo como religião da compaixão
De acordo com Nietzsche, a morfina mais prejudicial do sistema narcotizante cristão está justamente no exercício de sua virtude fundamental. Ora, o olhar parcial do cristianismo, nascido de seu ressentimento perante a efetividade, de seu estado decadente que eleva e glorifica a doença como santa e purificadora, elege justamente o sentimento que brota diretamente da fraqueza humana como a virtude suprema, a saber, a compaixão. Devido a isso, Nietzsche denomina o cristianismo de a religião da compaixão[12]. Nietzsche vê na louvação da compaixão como virtude uma atitude que leva o indivíduo a nutrir um profundo rancor para com a vida, uma vez que ela multiplica a dor e o sofrimento, contribuindo para o surgimento de uma vida insalubre e insuportável. Mediante a compaixão, torna-se patente para o homem a miséria inerente à vida e ao mundo em geral. Ora, de acordo com Nietzsche, o cristianismo é a negação da vida tornada religião, por isso, a compaixão é o seu valor mais caro, já que o exercício da mesma conduz fatalmente o indivíduo ao desapego perante o mundo. Mas o mais letal perigo que representa a compaixão é a possibilidade de impedir a superação da vida, já que ela pretende mormente conservar a fraqueza, tornar o estado doentio permanente. Como Nietzsche esclarece:
Em termos bem gerais, a compaixão entrava a lei da evolução, que é a lei da seleção. Conserva o que está maduro para o desaparecimento, peleja a favor dos deserdados e condenados da vida, pela abundância dos malogrados de toda espécie que mantém vivos, dá a vida mesma um aspecto sombrio e questionável (AC, §7, p. 13).
Afinal, a compaixão multiplica a dor de um só na dor de vários, e a caridade impulsionada por ela não consegue e nem mesmo visa sanar a miséria do próximo, mas somente minimizá-la, não eliminando suas causas, e sim apenas seus efeitos. Como argumenta Nietzsche:
Ela faz crescer o sofrimento do mundo: indiretamente, aqui e ali, um sofrimento pode ser diminuído ou suprimido graças à compaixão, mas não se deve utilizar tais conseqüências ocasionais e, no conjunto, insignificantes, para justificar sua natureza, que, como disse, é prejudicial (A, § 134, p. 104).
Dessa maneira, a religião da compaixão não almeja livrar o mundo do sofrimento, mas sim torná-lo mais insalubre e digno de desprezo, retardando, assim, a superação da vida que surge do encarar e enfrentar as vicissitudes, buscando um resultado efetivo ao invés de simples calmantes. Ora, uma religião que almeja sobretudo negar a vida, disseminar o ódio ao mundo, demonizar aquilo que é natural, tende a eleger a compaixão como virtude capital, pois através dela o querer viver é negado plenamente. Portanto, Nietzsche sentencia:
Schopenhauer estava certo nisso: através da compaixão a vida é negada, tornada digna de negação – compaixão é a prática do niilismo. [...] é um instrumento capital na intensificação da décadence, como multiplicador da miséria e como conservador de tudo o que é miserável – a compaixão persuade ao nada!... [...] Schopenhauer era hostil à vida: por isso a compaixão tornou-se para ele uma virtude... (AC, §7, p. 14).
2 – JESUS E O CRUCIFICADO
De acordo com Nietzsche, é mister atentar para a diferença fundamental que distingue o símbolo do Crucificado da figura de Jesus de Nazaré, a fim de que se possa entender como a negação absoluta da vida se operou a partir de uma falsificação dos ensinamentos de Jesus.
2.1 – O símbolo do crucificado enquanto negação suprema da existência
Nietzsche vê na imagem cristã do Crucificado o símbolo supremo da negação da vida. É na morte do “filho de Deus” por “amor à humanidade”, como “sacrifício para o resgate dos seus pecados”, que o cristão tem o exemplo mais funesto do exercício da compaixão: a renúncia de si mesmo para alívio das misérias do próximo[13]. Ademais, na figura do Crucificado o sofrimento é divinizado como via de salvação, como veículo de fuga do mundo: “– Deus na cruz – não se compreende ainda o terrível pensamento por trás desse símbolo? – Tudo o que sofre, tudo o que está na cruz é divino...” (AC, §51, p. 62). É essa imagem, expressão máxima da negação da vida e dos valores que a exaltam, que Nietzsche irá contrapor a Dionísio e não o homem e a doutrina de Jesus de Nazaré, que é algo totalmente diverso daquilo que esse símbolo eclesiástico exibe. Na verdade, para Nietzsche, o que Jesus predicava foi inteiramente corrompido pelo significado que acabou prevalecendo acerca de sua morte na cruz, a sombra da cruz ofuscou, pois, o que a vida de Jesus de fato representou. Daí a célebre sentença nietzschiana: “O ‘evangelho’ morreu na cruz” (AC, § 39, p. 45). Deste modo, Nietzsche argumenta que para se compreender como a figura do Crucificado foi elaborada é necessário distinguir Jesus de Nazaré do Cristo dos fiéis[14].
2.2 – O tipo psicológico de Jesus
Nietzsche argumenta que uma investigação histórica e objetiva sobre quem teria sido Jesus, o que ele de fato fez e disse, é uma tarefa fadada ao fracasso, visto que os únicos documentos acessíveis para uma tal empreitada, ou seja, os evangelhos, são exatamente a prova cabal da falsificação feita em torno de sua figura[15]. O importante segundo Nietzsche é, na verdade, a reconstrução do tipo psicológico de Jesus, que ele acredita estar contido nos evangelhos, malgrado seu caráter adulterador. Em primeiro lugar, Nietzsche vê em um tal tipo algo distinto de um nobre ou mesmo de um escravo, pois instituir ou negar valores não era sua preocupação[16]. Não é também nas categorias de herói e gênio sugeridas por Renan que Nietzsche enquadra Jesus. Ele não poderia ser um herói, pois rejeita todo e qualquer ato de resistência, nem tampouco gênio, visto que Jesus vive em um mundo alheio a todo e qualquer conceito de espírito próprio da cultura ocidental. É mediante o uso do terminus “idiota” que Nietzsche crê desvendar o tipo psicológico de Jesus. É, portanto, a partir da leitura dos romances de Dostoievski[17], que Nietzsche conta obter a classificação fisiológica mais inequívoca para a pessoa de Jesus, no tipo que se traduz pela palavra “idiota”: uma mistura de “sublime, enfermo e infantil” (AC, §31, p. 38). Eis o diagnóstico dado por Nietzsche ao tipo de Jesus: “[...] um estado de doentia excitabilidade do tato, no qual se recua, tremendo, ante qualquer contato, qualquer apreensão de um objeto sólido” (AC, § 29, p. 36). Duas conseqüências surgem de um tal condicionamento fisiológico: o recuo instintivo ante toda e qualquer efetividade, devido a uma extrema capacidade para o sofrimento, que precisa evitar qualquer contato; e a exclusão instintiva de toda e qualquer inimizade, por ver na resistência azo para um aumento exponencial do sofrimento. O amor se torna, então, para tal natureza, a única condição de vida. Preso a um tal mundo interior, Jesus não poderia, conseqüentemente, negar qualquer exterioridade, seu único parâmetro para o que é verdadeiro torna-se, dessa forma sua própria prática: “[...] ele jamais teve motivo para negar o ‘mundo’, jamais teve idéia do conceito eclesiástico de mundo’...” (AC, §32, p. 39). A principal mensagem que Jesus desejava transmitir aos homens, segundo Nietzsche, era que o “reino de Deus” já havia chegado, e que homem e Deus já não estavam mais separados pelo pecado, o estado de extrema beatitude que ele havia encontrado representava um tal reino, seu modo de vida era a realização dessa união com Deus. Assim esclarece Nietzsche: “Que significa ‘boa nova’? A vida verdadeira, a vida eterna foi encontrada – não é prometida, está aqui, está em vocês: como vida no amor, no amor sem subtração nem exclusão, sem distância” (AC, §29, p. 36). Não há, aqui, nenhum rancor para com a realidade, nenhuma negação da vida em favor de um reino que ainda há de vir. Pelo contrário, de acordo com Nietzsche, em Jesus: “O ‘reino do céu’ é um estado do coração – não algo que virá ‘acima da terra’ ou ‘após a morte’” (AC, §34, p. 41). Assim, a morte de Jesus na cruz não é a promessa de uma nova vida, de uma vida destituída dos “males” desse mundo. Jesus não morreu para salvar ninguém e nem para redimir os pecados da humanidade, ele morreu por sua própria culpa, porque a prática da não resistência atingiu o âmbito do poder institucional da casta sacerdotal, já que, sendo a lei necessariamente coercitiva, uma tal atitude representava sua abolição, e o sacerdote, como mantenedor da lei, teria, de tal modo, o seu poder destituído[18]. Jesus enfrentou a morte não para ser “o cordeiro de Deus”, mas para confirmar sua pregação: “Esse ‘portador da boa nova’ morreu como viveu, como ensinou – não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver” (AC, §35, p. 42).
2.3 – Os “atos dos apóstolos”
A morte de Jesus foi, no entanto, absolutamente má compreendida por seus discípulos, que, colocados ante a terrível visão da cruz e não suportando tamanha infâmia, buscaram uma causa, uma razão, um sentido e um culpado. “Quem o matou? Quem era o seu inimigo natural?” (AC, §40, p. 47), eles se inquiriram mutuamente. Resposta: “o judaísmo dominante, sua classe mais alta” (Id. Ib.). De tal modo se emprestou a Jesus uma característica que lhe era totalmente alheia: o ressentimento. Ele se torna combativo, guerreiro, o Messias, que retornará para instaurar o “reino de Deus” e julgar seus inimigos. Mas, tal “reino” já havia sido realizado pelo seu exemplo de vida, não era, pois, uma promessa. Todavia, a primeira comunidade cristã não compreendeu isso, vingando-se de todo poder sacerdotal, e, mediante uma ampla negação do que Jesus havia predicado, fazendo dele o único “Filho de Deus”. Mas, então, como Deus permitiu a morte do próprio filho? Uma resposta funesta dada a essa pergunta decidiu o destino do evangelho: Deus teria dado o seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados da humanidade. Segundo Nietzsche, nessa interpretação tem fim todo o sentido da doutrina que Jesus havia professado, já que, como Nietzsche atesta: “– Jesus havia abolido o próprio conceito de ‘culpa’ – ele negou todo abismo entre Deus e o homem, ele viveu essa unidade de Deus e homem como sua ‘boa nova’... E não como prerrogativa“ (AC, §41, p. 48). Mas esse foi só o início da falsificação iniciada após a morte de Jesus na cruz, já que será Paulo, “o apóstolo dos gentios”, que irá escamotear definitivamente os seus ensinamentos. Como assevera Nietzsche, em Paulo: “O tipo do Redentor, a doutrina, a prática, a morte, o sentido da morte, até mesmo o após a morte – nada permaneceu intacto, nada permaneceu próximo da realidade (AC, §42, p. 49).
2.4 – Paulo e a invenção do cristianismo institucional
Nietzsche acusa Paulo de ser o verdadeiro inventor do cristianismo: “[...] sem os desconcertos e arrebatamentos de um tal espírito, de uma alma tal, não haveria o cristianismo; mal saberíamos de uma pequena seita judia cujo mestre morreu na cruz“ (A, §68, p. 53). Em Paulo, todo rancor e ódio rabínico se personalizam, um ódio implacável contra o mundo, contra “a sabedoria do mundo” se faz “carne e gênio”: “O que não sacrificou ao ódio esse ‘disangelista’! Antes de tudo o redentor: ele o pregou à sua cruz” (AC, §42, p. 49). Com sua formação helenística, Paulo incluiu no cristianismo toda uma doutrina de salvação e imortalidade da alma própria aos cultos de mistério, logo, retirando todo peso que se poderia dar ao exemplo de vida de Jesus. Ademais, a visão paulina é extremamente institucionalizada, centrada mais na pessoa (divina e supostamente salvadora) de Jesus do que em seus ensinamentos e em seu exemplo de vida e morte. O importante para Paulo, não é viver de acordo como Jesus havia vivido e sim aceitá-lo como legítimo salvador, a fim de se garantir uma vida eterna no “Paraíso”. Todavia, Nietzsche argumenta: “É absurdamente falso ver numa ‘fé’, na crença na salvação através de Cristo, por exemplo, o distintivo do cristão: apenas a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã...” (AC, §39, p. 45). De acordo com Nietzsche, todo ódio que Paulo nutria contra o mundo se torna gravemente expresso na doutrina do “Cristo ressuscitado” que se torna o mote de sua pregação[19]. Sendo assim, diz Nietzsche: “Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás dessa existência – na mentira do Jesus ‘ressuscitado’” (AC, §42, p. 49). Por conseguinte, o “sacrifício” de Jesus na cruz adquire com Paulo o significado de símbolo máximo de reprovação da vida, com sua crença no “além” Paulo consegue finalmente matar a vida (AC, §58, p. 75).
3 – O DEUS DIONÍSIO
A imagem do Crucificado que Nietzsche contrapõe ao deus Dionísio refere-se àquela interpretação deturpada criada pela cristandade sobre quem teria sido Jesus e qual teria sido o sentido de sua morte. Mas, e quanto a Dionísio, quem seria ele, afinal, e por que Nietzsche o contrapõe ao símbolo eclesiástico do Crucificado?
3.1 – Dionísio na mitologia grega
Na mitologia grega, Dionísio era associado à vegetação e, assim como é próprio dos deuses ligados ao plantio, contava-se que ele havia sofrido uma morte violenta, mas que teria sido trazido novamente à vida; seus tormentos, morte e renascimento eram celebrados em ritos primaveris. Uma das variantes míticas narra que Dionísio era fruto da união entre Zeus e Perséfone. O jovem deus estava destinado a suceder o pai no trono olímpico. Hera, a esposa de Zeus, porém, ao saber da traição do marido, decidiu vingar-se deste tramando a morte de Dionísio. Nesse meio tempo, Dionísio era criado pela mãe numa caverna no monte Parnaso. Dois titãs enviados por Hera aproveitaram a ausência de Perséfone e surpreenderam Dionísio que tentou em vão fugir. Para escapar dos titãs o jovem deus tentou várias metamorfoses, mas os titãs acabaram encontrando-o na forma de um touro e o mataram, retalhando o seu corpo em sete pedaços. Os titãs ferveram as porções do corpo destroçado do jovem deus em um caldeirão e depois as assaram em sete espetos. Atenas chegou a tempo de contemplar o deplorável acontecimento e, como já não poderia salvar o menino, resgatou o seu coração. Zeus, atraído pelo odor de carne assada, viu a cena e entendeu o que havia se passado. O deus foi dominado pela fúria e fulminou os titãs com os seus raios. Zeus estava desolado com a morte do filho, quando a deusa Atenas apareceu e entregou-lhe o coração do deus assassinado. O pai dos deuses, então, efetuou o renascimento do jovem deus, engolindo o coração e dando, ele próprio, à luz a um novo Dionísio. Quando se tornou adulto, Dionísio descobriu a videira e criou o vinho, tornado-se, dessa forma, o deus do vinho e igualmente o deus da dança e da música, elementos que se faziam presentes no seu culto. E essa seria a origem do deus morto e renascido também chamado Zagreus, relatada pelos antigos e celebrada nos mistérios.
3.2 – A afirmação dionisíaca da vida
Como se dará, então, o uso dessa imagem mítica nas obras nietzschianas? Em sua primeira obra, O nascimento da tragédia, Nietzsche faz ver que por meio da tragédia, cuja origem estaria no coro satírico em honra a Dionísio, os gregos lograram superar o seu pessimismo. Para Nietzsche, diferente do que Aristóteles predicava sobre a mesma, a descarga (catarse) de afecções nocivas como a compaixão e o terror não era seu principal alvo, e sim o embevecimento provocado pelo prazer na crueldade que anseia ver a dor porque anseia pela vida, porque aceita a vida; e, ao contrário do que defendia Schopenhauer, a visão crua e dilacerante dos fatos encenados no espetáculo trágico não provocava a resignação mediante o desvelamento da essência sofredora do mundo, mas, sim, pelo contrário, a afirmação inebriante de todos os aspectos da vida, incluindo a dor, as derrotas e as privações. Semelhante embriaguez é provocada pelo sacrifício do herói, que é mera máscara, personificação do deus Dionísio, o qual foi dilacerado pelos Titãs e renasceu, mostrando que a vida é eternamente destruída e recriada, que para haver vida a criação e a destruição são igualmente necessárias. Essa visão conferia ao grego um poderoso efeito letárgico que o prendia ainda mais à vida. Como explica Nietzsche no Nascimento da tragédia[20]: “O consolo metafísico [...] de que a vida, no fundo das coisas, apesar se todas as mudanças das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria” (NT, §7, p. 55). Assim sendo, nessa visão de mundo que a tragédia conferia aos gregos, a dor, o sofrimento e a morte, mostram-se indissociáveis do prazer, da alegria e da vida. O mundo é assim aceito em sua totalidade, nada nele é negado ou rejeitado. Como nos mostra Márcio Lima[21]:
No simbolismo de nascimento, morte e renascimento do deus [Dionísio] está a maneira como o filósofo compreende o ciclo da vida e do mundo; nele, a dor e o prazer são interpretados como os sentimentos naturais que o curso circular das coisas provoca. Na sabedoria do mito está a concepção de que à dor do parto segue-se a alegria do nascimento; assim é na tragédia – ponto culminante da visão dionisíaca –, em que a ruína do herói provoca uma alegria suprema no espectador. Portanto, a alegria que a vontade de vida revela nos gregos está indissociavelmente relacionada aos tormentos a que estão sujeitos (Op. Cit., p. 148).
Essa afirmação suprema da vida que brota diretamente da abundância de poder e da saúde é denominada por Nietzsche de afirmação dionisíaca da vida. O aceitar a vida, o querer a vida, o grande anelo para tudo aquilo que a vida tem para oferecer, para a tudo aquilo que se pode criar nela. Sem renúncia, sem rancor, sem olhares enviesados: “O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos [...] a isso chamei dionisíaco” (CI, “O que devo aos antigos”, §5, p. 106).
3.3 – A diferença existente entre o martírio de Dionísio e o sacrifício do Crucificado
A visão dionisíaca do mundo representa exatamente o oposto do que a imagem cristã do Crucificado significa. Dionísio é o símbolo empregado por Nietzsche em sua tentativa de resgatar os valores esquecidos, difamados, amaldiçoados pelo cristianismo: todos os valores que exaltam, louvam e afirmam a vida, com tudo aquilo que ela nos oferece, mesmo incluindo a dor, o sofrimento e a derrota, pois esses não são fatores negativos, mas necessários e bem-vindos – a guerra dos opostos, o jogo de forças contrárias, são partes constituintes de uma vida plena.
Aparentemente o mito de Dionísio não possui um modelo tão diferente daquele contido no do imaginário cristão. Tanto em um como em outro, narra-se o sofrimento, a morte e o retorno da morte da figura central. Mas, para Nietzsche, o que os torna diferentes é o significado que se atribui a esse enredo. “Dionísio contra o ‘Crucificado: aí tendes a oposição. Não é uma diferença quanto ao martírio, - é só que ele tem um outro sentido” (Fragmento póstumo 14 [89] da primavera de 1888[22]). Ora, o sofrimento de Jesus é tido como a expiação dos pecados da humanidade, é motivado por um acontecimento estranho à ordem das coisas (o pecado original), não é algo que tem um sentido natural, portanto, nem é um mero fruto do acaso, é a expiação por meio de um inocente de um crime que separou Deus dos homens. Nesse caso, a dor é santificada como instrumento de salvação, mas, ao mesmo tempo ela é negada como algo que pertence necessariamente à existência. “[...] o ‘crucificado como inocente’, vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação” (Id. Ib.). No caso do sofrimento de Dionísio, essa interpretação não tem sentido. O jovem deus é morto devido simplesmente ao desejo de vingança da deusa Hera, quase que por capricho ou mesmo por mero acaso, ele não é culpado de nada nem assume deliberadamente a culpa de ninguém. No mito de Dionísio, a dor é um acontecimento que pertence à vida de maneira natural, ela não é vista como estranha, ela pertence à ordem apropriada das coisas e não poderia ser repudiada nem banida do mundo. “A vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno, condiciona o tormento, a destruição, a vontade de aniquilamento” (Id. Ib.). Na ressurreição de Cristo a vida é categoricamente derrotada, pois o sofrimento é, com isso, tido como eliminado. Acredita-se que Cristo se torna, então, puro espírito, dessa maneira, a carne, o corpo é execrado juntamente com toda a sua fragilidade e com os perigos que o assaltam. Quando Cristo ascende aos céus, para uma nova vida, sem dor, morte e sofrimento, as próprias condições para que a vida possa se efetuar têm, portanto, o seu sentido e valor aniquilados. Já o renascimento de Dionísio, representa um retorno para a mesma vida, com todas as suas contradições e perigos. Aqui, o corpo e a sensualidade não são repudiados, pelo contrário, já que Dionísio é tido como o criador do vinho e deus da música e da dança. Sua volta é, na verdade, um novo começo, neste mundo, indicando que a vida, apesar do movimento inconstante do mundo é indestrutível, pois retorna sem cessar. Como esclarece Nietzsche: “O deus na cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontado para redimir-se dela: - O Dionísio cortado em pedaços é uma promessa de vida: eternamente renascerá e voltará da destruição” (Id. Ib.).
A afirmação dionisíaca que Nietzsche contrapõe à visão cristã simbolizada na imagem do Crucificado não é a afirmação do estado doentio, debilitado e fraco, porém, a da superação, do crescimento, da ascendência, do acúmulo de forças que surge do combate à dor e às misérias. Ora, sem obstáculos não há luta, e sem luta não há superação[23]. O que Nietzsche despreza é o rancor para com a dor, o ressentimento para com o padecimento, porque isso é negar a própria vida, já que ela inclui necessariamente as dificuldades. O cristianismo santificou o estado doentio, fraco e miserável como purificador, mas apenas como um meio de se obter a salvação eterna da alma, por conseguinte, seu culto ao sofrimento é um culto à resignação, à acomodação, à espera, mas nunca à superação, à necessidade da dor, dos infortúnios e do sofrimento para a elevação. Visto que no “reino de Deus” a dor inexiste para aqueles que padecem nesse mundo, o cristão aceita “livremente” a sua desventura – e quanto maior for seu sofrimento maior são suas chances de obter a sua salvação – à espera de um mundo sem dor, ele não busca, portanto, fortalecer-se no combate aos seus problemas, conservando, assim, o seu estado deplorável. Não ser amargo, vingativo, aceitar a doença, por exemplo, mas não o seu estado permanente, amá-la mesmo pelo seu caráter motivador, impulsionador, que excita à superação, à busca pela saúde, ao alcance da verdadeira felicidade[24] é o que Nietzsche predica ao contrapor Dionísio contra o crucificado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pôde-se verificar que o simbolismo presente na figura do deus pagão Dionísio representa para Nietzsche a suprema afirmação da vida com todos os seus aspectos, com todas as suas facetas, com todas as suas contradições. Um tal olhar, para Nietzsche, provém diretamente de um excesso de força, de uma plenitude de poder, de um anseio pelo perigo, pela inconstância, pelo vir-a-ser, como únicos caminhos que levam a mais alta superação, à grande saúde, à soberana felicidade: “[...] pagãos são todos os que dizem Sim à vida, para os quais ‘Deus’ é a palavra para o grande Sim a todas as coisas” (AC, §55, p. 68). Essa visão é diametralmente oposta ao símbolo do Crucificado, em que a grande inimizade contra a vida se traduz e se exibe com toda o seu rancor e pendor para o ódio vingativo contra o vir-a-ser: “[...] a cruz como distintivo da mais subterrânea conspiração que já houve – contra saúde, beleza, boa constituição, bravura, espírito, bondade de alma, contra a vida mesma...” (AC, §62, p. 79).
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[1] “Eu declaro o cristianismo a grande maldição, o grande corrompimento interior, o grande instinto de vingança, para o qual meio nenhum é suficientemente venenoso, furtivo, subterrâneo, pequeno - eu o declaro a perene mácula da humanidade” (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, §62, p. 79-80). Doravante indicar-se-á a obra com a sigla AC, seguida do número do aforismo e da página.
[2] Cf. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Labirintos da alma: Nietzsche e a auto-supressão da moral. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 181.
[3] Cf. GIACOIA JÚNIOR, Op. Cit., p. 20.
[4] Cf. GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Idem, Ibidem. E também BARBUY, Belkiss Silveira. Nietzsche e o cristianismo. São Paulo: GRD, 2005, p. 139.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Indicado a partir daqui com a sigla CI, seguida do título do capítulo, número do aforismo e da página.
[6] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Agora indicado com a sigla GM, seguida do número da dissertação, aforismo e página.
[7] Cf. BARROS, Fernando de Moraes. A maldição transvalorada: o problema da civilização em “O Anticristo” de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002, p. 37.
[8] “A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim” (NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, §130, p. 151). Indicar-se-á seguidamente a obra pela sigla GC, juntamente com o número do aforismo e página.
[9] Cf. BARROS, Op. Cit., p. 162.
[10] “O cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, §119, p. 96).
[11] NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Doravante indicado com a sigla A, seguida do número do aforismo e da página.
[12] “O cristianismo é chamado de religião da compaixão” (AC, § 7, p. 13). Cf. também, BM, §202 p. 117; GC, §338, p. 227; Idem, §377, p. 281.
[13] “É porque ele se encarregou de nossos sofrimentos; é porque ele tomou para si nossas dores” (Isaías, LXII, 4).
[14] Cf. BARROS. Op. Cit., p. 18.
[15] “– Os evangelhos são inestimáveis como testemunho da irresistível corrupção no interior da comunidade inicial” (AC, §44, p. 51).
[16] Essa interpretação é dada por BARROS, Op. Cit., p. 62.
[17] Para o esclarecimento da influência de Dostoievski no pensamento de Nietzsche Cf.: BARROS, Op. Cit., p. 64-65, e também GIACOIA JÚNIOR, Op. Cit., p.73-74. GIACOIA JÚNIOR esclarece que: “O emprego do termo [idiota] visa [...] ressaltar o lado afirmativo, não marcado pelo ressentimento. Na figura de Jesus de Nazaré, liberta de toda propensão à negação e oposição, o ensinamento brota exclusivamente da única realidade conhecida e vivenciada, da realidade do mundo interior” (p. 74).
[18] Para essa concepção, Cf. BARROS, Op. Cit., p. 65-66.
[19] “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé” (1 Coríntios, XV, 14).
[20] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e Pessimismo. Tradução, notas e posfácio J. Guisburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Agora indicado pela sigla NT, junto com o número do aforismo e da página.
[21] LIMA, Márcio José Silveira. As máscaras de Dioniso: Filosofia e tragédia em Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2006.
[22] Apud LIMA, Op. Cit., p.186-187. Cf. também NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural,1983, p. 394.
[23] Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 22.
[24] Para uma noção do que seria a felicidade em um sentido nietzsciano, Cf.: BARROS, Op. Cit., Capítulo III, “Rumo aos hiperbóreos”.
Parabéns, muito bom!!!
ResponderExcluirMARAVILHA!!! ÓTIMO!!!
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